Votação na ONU poderá consagrar Brasil como pária na luta global antirracista

A repercussão do caso George Floyd —homem negro norte-americano morto sufocado por um policial branco— e os consequentes protestos que percorreram o mundo chegaram ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e serão o teste de fogo da diplomacia brasileira perante a comunidade internacional sobre como o país se posicionará daqui em diante na luta antirracista.

Nesta quarta-feira (17) está prevista a votação na ONU de uma resolução que cria uma comissão internacional e independente para investigar o racismo e a violência policial contra negros nos EUA.

Outros países afetados pela violência institucional contra pessoas negras, como o Brasil, também podem vir a ser analisados, mas a resolução tem o cenário atual dos Estados Unidos como foco.

Manifestante segura retrato de George Floyd, cujo assassinato por um policial branco gerou uma onda de protestos nos EUA contra a violência policial e o racismo (Foto: Angela Weiss – 25.mai.20/AFP)

No que pesem as crônicas violações de direitos humanos no âmbito doméstico, o Brasil já liderou diversas resoluções no Conselho de Direitos Humanos da ONU a respeito da questão racial, inclusive a que estabelece a incompatibilidade entre democracia e racismo, aprovada pela última vez em 2018.

O país já foi considerado internacionalmente uma referência na elaboração de políticas voltadas para a redução da discriminação racial e enfrentamento ao racismo, tanto no âmbito da ONU quanto no da OEA (Organização dos Estados Americanos).

Desde o início do governo Bolsonaro, entretanto, a imagem internacional do Brasil vem se corroendo. Pela primeira vez desde a retomada democrática, há uma forte inflexão na política externa brasileira, com tradicionais posições de Estado sendo substituídas por posições ideológicas de governo.

Caso o Brasil vote contrariamente a esta resolução ou se abstenha na votação, poderemos definitivamente nos tornar um pária na luta mundial contra o racismo, azedando relações diplomáticas e comerciais com inúmeros países da África, levantando a desconfiança de diversos outros Estados que pautam sua política externa em padrões mínimos de direitos humanos e até prejudicando o ingresso na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e a ratificação do acordo comercial do Mercosul com a União Europeia.

Um voto contrário a essa resolução ou uma abstenção não apenas será mais um atestado da interferência ideológica do governo Bolsonaro no Itamaraty, mas também uma forma de demonstrar subserviência incondicional aos interesses dos Estados Unidos.

Mais do que isso, um eventual não apoio à resolução proposta representa uma proteção às próprias políticas genocidas, negacionistas e revisionistas do governo Jair Bolsonaro contra a população negra no Brasil.

Falamos em genocida porque a alta letalidade policial do país tem como alvo justamente a população negra —das 6.220 mortes por intervenção policial em 2018, segundo o Anuário de Segurança Pública, 75,4% eram de negros.

Comparativamente aos Estados Unidos, a polícia brasileira mata até cinco vezes mais que a polícia norte-americana.

Negacionista porque o governo insiste em evocar o mito da democracia racial ao dizer que, segundo palavras do próprio vice-presidente Hamilton Mourão, a formação da sociedade brasileira “não nos legou o ódio racial”.

Por fim, revisionista quando o presidente Jair Bolsonaro imputa aos africanos a responsabilidade pela escravidão ou quando a Fundação Palmares censura deliberadamente biografias de lideranças negras históricas de suas páginas na internet.

Como membro do Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Brasil tem direito de propor e votar resoluções. Um voto contrário ou abstenção do Brasil à resolução em votação nesta quarta será mais um atestado de que o país não está à altura do assento que ocupa no órgão.

Lamentavelmente, o Brasil cria as condições para seu isolamento político do restante do mundo.

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