A TV, o tabu e o interesse nacional

Fonte: O Estado de São Paulo –

Eugênio Bucci – colunista do Espaço Aberto

 

Confecom. Caso você, leitor, não faça ideia do significado desse termo, tudo bem. Se a palavra, aos seus ouvidos, soa como nome de ruína grega ou marca de xarope, a culpa não é sua. A responsabilidade é da esquisitice vernacular de quem inventa esse tipo vocábulo – e, principalmente, é da hesitação da imprensa, que cobre mal o assunto.

Comecemos pela invenção do nome, que é um acrônimo de Conferência de Comunicação. Um acrônimo oficialista para batizar um evento que poderá ter importância histórica. Dizer simplesmente Conferência de Comunicação seria mais direto – e seria mais convidativo. Agora, dizer Confecom é lançar mão de um código enigmático, que mais afasta do que atrai. Fica parecendo coisa para iniciados. E é justamente aí, nesse léxico cifrado, impenetrável, que se esconde o sentido mais profundo da nomenclatura hermética. A esquisitice do nome não é apenas uma infelicidade semântica. Ela é um sintoma ideológico de uma cultura estatal que tende a denominar (para dominar) movimentos sociais que, supostamente, teriam de ser autônomos. Tanto que muitos já perguntam: a Confecom é uma iniciativa da sociedade que foi abrigada, mas não controlada pelo governo ou, com esse gosto de sigla oficial, é uma ação tática do governo por meio de voluntários da sociedade civil?

Ninguém sabe direito. A imprensa também não sabe e talvez por isso dedique tão pouco espaço a esse negócio aí, a Confecom. O que é uma falha: na ponta da linha, desinforma o cidadão. E é uma pena: o assunto é grave demais para ser negligenciado. A pauta da Confecom corresponde ao mais alto interesse nacional. Trata-se da mais ambiciosa iniciativa encampada por um governo, pelo menos desde o golpe de 1964, para debater o ordenamento da comunicação social no País. Não é pouca coisa.

O debate é urgente e necessário. E, note bem o leitor, ele já está em marcha. Convocada em abril por um decreto do presidente da República, a Confecom já realizou assembleias abertas em centenas de cidades. Agora, em novembro, ocorrem os encontros regionais – em todos os Estados e no Distrito Federal -, com a presença dos delegados eleitos nos municípios. Dentro de um mês, de 14 a 17 de dezembro, virá a etapa nacional, em Brasília, para a qual são esperados 1.500 participantes (representando as empresas do setor, o Estado e a sociedade civil). Cada um deles será portador de reivindicações e propostas das reuniões anteriores, sobre este tópico que é central, é estrutural da nossa democracia: os marcos legais que regulamentam a comunicação no País, da radiodifusão ao acesso à internet de banda larga.

Até outro dia, o tema era tabu, até mesmo na Esplanada dos Ministérios. Como devem funcionar as concessões de TV? De que forma é possível limitar a propriedade cruzada dos meios de comunicação, ou seja, o controle por um só grupo econômico, numa mesma cidade, da principal emissora de TV aberta, do maior jornal diário, da maior emissora de rádio e da maior operadora de canais por assinatura? Como superar os monopólios e oligopólios? Já vi ministros de Estado empalidecerem ao som dessas indagações. Para eles era mais fácil discutir a censura, a tortura ou o latifúndio. Mexer com as redes de TV, nem pensar.

Agora, são ministros de Estado que tomam a dianteira da Confecom. O que mudou? Qual o real interesse dos ministros? É claro que isso interessa à sociedade. Diante disso, como explicar a lentidão da imprensa? Dizer que as empresas jornalísticas não gostam de debater em público o seu próprio status quo – embora tenha lá seu fundo de verdade – não dá conta da complexidade do que se passa. Ao contrário da crendice de milhares de ativistas sindicais, os noticiários não são integralmente moldados pelas intencionalidades dos patrões. Os noticiários são permeáveis aos fatos. Acontece que, nesse caso, os fatos se mostram por demais ambíguos aos óculos convencionais da nossa cultura jornalística – e ela não sabe direito como tratá-los. Sem identificar o real caráter da Confecom, sem saber o que fazer com a ambiguidade que ela encerra, as redações parecem ter caído num imobilismo paroxístico. Do meu ponto de vista, a explicação para os silêncios do noticiário passa mais por esse imobilismo – decorrente da dificuldade de noticiar processos contraditórios – do que por um boicote patronal.

E aqui, finalmente, eu volto ao impasse apresentado no início deste artigo: a Confecom é uma iniciativa da sociedade, independente do Estado, ou é um comício a serviço do governo? É um movimento a favor da liberdade de expressão ou uma gritaria para intimidar, em nome do poder, as redes de TV comercial – lembrando que estamos a menos de um ano das eleições gerais? Há muitas razões para se ter dúvidas quanto a isso. Por exemplo: por que será que, até agora, os principais setores não-governamentais que encabeçam a Confecom não emitiram uma manifestação explícita contra a censura judicial, que vitima tanto grandes jornais quanto pequenos blogs? Esses setores têm mesmo um compromisso radical e incondicional com a liberdade? São perguntas em aberto.

Mais exatamente, são perguntas que, por ainda carecerem de respostas, desnudam o fato de que a Confecom pode ir tanto para um lado como para o outro. Há, no seu bojo, propostas stalinistas, assim como há propostas democráticas. Quem representa o quê? Qual lado tem mais força? Como o cidadão pode informar-se sobre esse processo?

Cabe à imprensa responder. O que ela não pode é desperdiçar a chance de investigar e debater em profundidade e criticamente este imenso atraso da nossa democracia: a ausência de marcos regulatórios modernos para a radiodifusão e a comunicação. Existem erros inúmeros na Confecom, mas silenciar sobre ela será um erro bem maior.

Eugênio Bucci, jornalista, é professor da ECA-USP

Matéria original

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