Linhas Periféricas: registro de um novo amanhecer na periferia

Mais uma bela página na história da periferia paulistana. Sinal que ela continua emanando suas riquezas, belezas e seu lado mais contestador acerca da realidade social que insiste em atravessar gerações em São Paulo e no Brasil

A primeira vez que me deparei com o documentário Linhas Periféricas, realizado por estudantes da Universidade Metodista, foi no blog de Jéssica Balbino. Em seu breve post ela diz “nada saber sobre o documentário” e esboça emoção ao dizer que viu um de seus livros no fundo da tela, “ao lado de outros volumes da coleção Tramas Urbanas, da editora Aeroplano”, quando Heloísa Buarque de Hollanda, coordenadora da Universidade das Quebradas, aparece dizendo que vasto número de acadêmicos não consideram a literatura da margem como literatura: é classificada por muitos como um fenômeno sociológico que com certeza vai passar. Como se fosse alguém em surto que, ao certo, depois de voltar à realidade, apenas torce para que não tenha afetado nenhum mecanismo do funcionamento cerebral.

A aparente timidez de Jéssica para no registro feito em seu blog — em novo texto no site Rap Nacional, mais informações são disponibilizadas. Aliás, quem sou eu para dizer que uma das escritoras de maior relevância no cenário chamado marginal é tímida em suas palavras? Na verdade, ainda bem que posso me corrigir a tempo, ela em seu primeiro texto quis apenas dar ressonância a voz “dos poetas, ao microfone, declamando sua revolta, indignação, o seu amor, a sua cor e, como não poderia deixar de ser, a sua dor”. Isso tudo abunda no registro de vinte e cinco minutos que percorre três bairros periféricos da cidade de São Paulo.

O vídeo documentário começa com a imagem do metrô que chega quase ao extremo sul da capital, em um dia qualquer com um pouco de sol e, logo após, um menino negro correndo em becos, escadas inacabadas, ruas ainda de terra, com o famoso chinelo de dedo desgastado, um livro de Ferréz nas mãos. A capa é inconfundível: Capão Pecado.

Não poderia ser mais fiel. Os livros e os saraus são alternativas que estão em alta nos locais que antes tinham como atração apenas o “bar e o Candomblé para se tomar a bênção”, como anunciava Mano Brown em 1993 em Raio X do Brasil, disco que traz as músicas cantadas até hoje nas periferias: “Homem na Estrada” e “Fim de Semana no Parque”. Os contos, as crônicas e as poesias são armas que estão em vários casos substituindo as pistolas que os mais sensacionalistas afirmam ter nas mãos de qualquer morador da favela.

Segundo Jéssica Balbino, o documentário é “mais um capítulo escrito no livro do Hip-Hop”. Remonta informações do Sarau do Binho, da Cooperifa, antes de 1995. Acrescenta, sobretudo, outro Sarau que acontece em um Telecentro no Capão Redondo — ambiente diferente dos já conhecidos bares, em que as pessoas que tomam coragem para ir ao microfone entregam-se a uma desenvoltura que não cabe no silêncio das instituições que se prestam a fazer qualquer atendimento público. Mas não perde em nada a essência.

Agora, soa como não familiar ver alguém declamar poemas na periferia com a entonação bem diferente dos gritos aclamados de Sérgio Vaz toda quarta-feira no bar do Zé do Batidão. Parece um ritual que, quando feito de outra maneira, soa estranho aos que também se consideram na marginalidade. Concordo com Eleilson Leite quando diz no texto “Onde mora a poesia” que os saraus realizados em botecos “são muito rigorosos quanto aos rituais de pertencimento e acolhimento. Enganam-se aqueles que veem esses encontros como algo furtivo e desprovido de rigores”.

Verdade, mas muito mais enganado ainda está quem pensa ser nova essa avalanche cultural periférica. Carolina Maria de Jesus, Solano Trindade, Esmeralda Ribeiro (uma das criadoras do Quilombhoje Literatura, grupo que existe há mais de trinta anos), vêm fazendo isso com força e competência no decorrer da história. Arrisco dizer, por exemplo, que Sacolinha tem fortes raízes nas ricas publicações de Cadernos Negros. Até porque é o texto dele que inaugura o caderno de volume 34, com o conto “Adversário Íntimo” — fala, basicamente, do ranço de um acadêmico que inveja um jovem negro que escreve e publica muitos livros sobre o tema que pesquisou, mas não viveu. Algo mais recorrente que qualquer pessoa imagina.

Linhas Periféricas é a continuidade. Nem o fim e nem o começo, apenas o registro do nascer de um novo amanhecer na periferia.

Fonte: Rede Outras Palavras

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