As privatizações nos serviços públicos de saúde

Por Luciano Bezerra Gomes, médico sanitarista, professor do Departamento de Promoção da Saúde do Centro de Ciências Médicas da UFPB.

Boa parte das discussões sobre a privatização da saúde aponta para sua face mais evidente, contra a qual praticamente todos os militantes que defendem o Sistema Único de Saúde são contra: a entrega da administração dos serviços de saúde para entidades privadas. Não obstante precisemos engrossar ainda mais a resistência a este processo, quero salientar que a privatização contra a qual luto tem outras dimensões. A seguir, procuro apresentar algumas destas dimensões e apontar possibilidades de superação para as mesmas, considerando desde já que as denominações que dei para cada uma delas é transitória e que as mesmas poderiam ser definidas de outra maneira. Nem preciso salientar que o texto as aborda de forma sucinta e incompleta, tendo o papel de levantar o debate e não de esmiuçá-lo em todas suas consequências.

Primeira dimensão – a privatização do cuidado: tal processo ocorre quando profissionais tentam subjugar o sujeito que demanda cuidado, exercendo na atenção à saúde relações de poder que não reconhecem a autonomia do outro. O usuário do serviço se torna mero objeto da prática profissional em saúde, sob domínio dos que têm legitimidade social para executá-la, e sua capacidade de decidir sobre sua vida e de promover autocuidado tentam ser anuladas. Isto se apresenta de forma mais radical no debate sobre a saúde mental e os toxicômanos, mas também se apresenta (talvez de forma mais brutal, porque menos aparente) em boa parte dos encontros entre trabalhadores e usuários, em que a doença, objeto-criação do conhecimento técnico-profissional, toma a centralidade em lugar da vida. Para superar esta privatização do cuidado, que poderia também denominar por privatização da vida, precisamos colocar o cuidado ao usuário como centro da prática em saúde, reconhecendo que a autonomia não é algo que damos ao outro, mas que é inerente à pessoa em qualquer situação, e que precisa ser reforçada ao invés de negada no trabalho em saúde.

Segunda dimensão – a privatização do saber: destaco, entre outras possíveis, duas maneiras relevantes de privatização do saber operando nos serviços de saúde. 1. Por um lado, temos a negação ou apropriação de saberes da própria população, seja os relacionados às condições de sua própria vida, ou então diversos conhecimentos sistematizados por gerações referentes ao uso de recursos próprios (plantas, rezas, banhos, etc.) no cuidado em saúde. 2. Por outro lado, operando de modo mais sutil e refinado, é cada vez mais forte o papel da “medicina baseada em evidências” definindo o que é legítimo e o que não é, como se a epidemiologia clínica fosse suficiente como critério de verdade universal, como um meta-saber capaz de decidir sobre a efetividade do que se pode ou não ser utilizado. Lembro bem do comentário que o Gastão Wagner fez quando do lançamento da tese do Arouca com reflexões de diversos autores comentando cada capítulo. Gastão nos chamava a atenção para que, nos dias de hoje, a “medicina baseada em evidências” tenta assumir, em parte, o papel que Arouca denunciava ao expor os meandros da proposta da medicina preventiva (CAMPOS, 2003). Para superar esta privatização do saber, é necessário exercitar o diálogo respeitoso entre os distintos saberes que operam na produção do cuidado, considerando o saber como ferramenta e não como camisa de força a delimitar os movimentos possíveis. Em nossas realidade, a educação popular em saúde se apresenta como uma das referências importantes na luta contra esta dimensão da privatização.

Terceira dimensão – privatização do acesso aos recursos disponíveis: é importante apontar que mesmo serviços com caráter jurídico público têm sido frequentemente privatizados indiretamente pelos profissionais que atuam neles e pelos sujeitos em situação de gestão. Um dos modos mais comuns é a privatização do acesso, que fica condicionado à submissão do usuário a relações de poder que destroem a saúde como direito e passam a instituir o acesso como moeda de troca. O acesso às consultas, aos recursos diagnósticos e terapêuticos, entre outros meios de produção da atenção à saúde, podem estar completamente controlados segundo interesses de grupos privados que se apropriam do serviço público para benefícios corporativos de profissionais ou de grupos que comandam a estrutura governamental nas distintas localidades. E isto é tão comum nos municípios de pequeno porte quanto nas grandes metrópoles deste país. Para superar esta privatização, precisamos organizar o acesso com equidade segundo as necessidades de saúde dos usuários, indo desde a implementação de acolhimento nos serviços até a instituição de complexos regulatórios mais qualificados e que direcionem o fluxo dos usuários nas linhas de cuidado segundo critérios claros, garantindo o caráter púbico dos serviços estatais.

Quarta dimensão – privatização das relações entre profissionais: tal processo ocorre quando tomo o outro profissional como mero objeto para minha prática. Por ser a categoria que, historicamente, exerce mais poder no trabalho em saúde, tal situação é comumente identificada e criticada quando a medicina opera como ciência definidora da atuação das demais, com o médico sempre assumindo o papel de ordenador do trabalho dos outros. Entretanto, tal processo é reproduzido de modo similar entre diversos profissionais, tal como se pode apreender ao se analisarem as relações entre enfermeiros que subjugam os técnicos e auxiliares de enfermagem, ou o cirurgião dentista que faz o mesmo em relação aos seus auxiliares e técnicos de higiene dental, ou dos profissionais com formação universitária sobre os agentes comunitários de saúde. Deste modo, as relações entre os trabalhadores perdem em potencialidade e os sujeitos passam a ser meras engrenagens, ordenadas externamente segundo lógicas que os aniquilam. Para superar esta privatização, precisamos democratizar as relações entre os profissionais da equipe instituindo estratégias de gestão e de educação permanente capazes de colocar em análise as relações de poder que operam no trabalho em saúde.

Quinta dimensão – privatização das deliberações nos serviços: aqui chegamos a uma dimensão mais próxima ao que ocorre quando há o repasse da administração dos serviços para grupos privados. Entretanto, quero enfatizar que mesmo sob gestão vinculada a governos, a administração pode ser completamente privatizada. Como podemos apreender das quatro dimensões expostas anteriormente, não é só o caráter jurídico da entidade que está à frente da gestão do serviço, é muito mais as lógicas que orientam o seu funcionamento que definem o seu caráter público. Os gestores governamentais que destinam os recursos públicos segundo os interesses de grupos políticos específicos ou de entidades privadas, desconsiderando a finalidade pública das ações e serviços de saúde, são tão privatizadores quanto os que repassam a administração dos serviços para as Organizações Sociais. Favorecimentos em licitações são o meio mais comum, mas há mecanismos bem mais sutis de privatização e que precisam ser denunciados e subvertidos. Para superar esta privatização, devemos radicalizar na participação popular nos serviços, indo bem além das instâncias formais do controle social, bem como precisamos desenvolver novas estratégias de transparência e comunicação social, utilizando as redes sociais, entre outras ferramentas.

Outras dimensões poderiam ser agregadas, mas a intenção neste texto é apenas destacar o quanto o desafio de lutar contra a privatização na saúde extrapola em muito a defesa da administração governamental dos serviços. Tentei apresentar algumas estratégias de privatização mesmo quando o serviço se apresenta sob a gestão direta das entidades governamentais porque acredito que devemos reconhecer estas (e outras) possibilidade de privatização na saúde e lutar sistematicamente contra elas. Não podemos esquecer que, muitas vezes, o inimigo está bem mais próximo da gente do que imaginamos.

Referências:

CAMPOS, G. W. S. Da medicina preventiva à medicina baseada em evidências. In: AROUCA, A.S.S. O Dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 2003. p.215-217.

+ sobre o tema

para lembrar

Leandro Karnal: professor que festejou ataque a estudante é “co-autor da violência”

O limite da liberdade de expressão Por Leandro Karnal Do DCM Conquistamos...

Nem pós-moderno ou governista. Apenas Prounista

O PROUNI (Programa Universidade para Todos) foi criado pelo...
spot_imgspot_img

Geledés participa do I Colóquio Iberoamericano sobre política e gestão educacional

O Colóquio constou da programação do XXXI Simpósio Brasileiro da ANPAE (Associação Nacional de Política e Administração da Educação), realizado na primeira semana de...

Aluna ganha prêmio ao investigar racismo na história dos dicionários

Os dicionários nem sempre são ferramentas imparciais e isentas, como imaginado. A estudante do 3º ano do ensino médio Franciele de Souza Meira, de...
-+=