Machismo e racismo dentro e fora do BBB

por Karen Polaz de Blogueiras Feministas

Não sou fã do BBB, sequer assisto ao programa regularmente. Porém, desde a faculdade, sempre morei com pessoas que acompanhavam a atração com entusiasmo, torciam para os participantes, votavam, sofriam, emocionavam-se. Portanto, acabo acompanhando de vez em quando, talvez até por causa de um certo interesse sociológico por realities shows em geral, de entender os motivos de mulheres e homens mostrarem suas vidas em rede nacional por livre e espontânea vontade e de haver tantos e tantos expectadores vidrados na telinha, seguindo cada movimento e discutindo sobre o que lá se passa, seja no trabalho, nos botecos, nas reuniões de família.

Nessa 12ª edição do BBB, por duas ocasiões li um bafafá na internet – já que eu não venho assistindo ao programa – e em ambas o protagonista era um homem chamado Daniel. Pelo que soube, no primeiro dia do programa, para provocar surpresa, colocaram mais quatro pessoas na casa, uma delas foi o Daniel. Até então, não havia negros entre as pessoas selecionadas para o BBB 12. Não porque nenhum negro tenha se inscrito, mas muito provavelmente, porque eles não são considerados referência de beleza pela grande mídia e pela maioria da população brasileira. Logo, não faz sentido colocar negros num programa que visa ampla audiência através de mulheres e homens bonitos. E não, não porque negros são inerentemente feios (assim como brancos não são inerentemente bonitos), é que, ao longo da História, aos negros foi dedicada uma parte da sociedade que se relaciona a tudo o que se considera ruim: sujeira, criminalidade, maldade e, nessa lógica, falta de beleza.

daniel bbb-300x223Daniel, participante do BBB 12. Foto de Frederico Rozário/TV Globo.

No primeiro dia de programa, Pedro Bial, sempre muito inteligente e profundo (cof, cof), perguntou ao moço se ele era a favor de cotas para negros. Para os outros participantes (brancos e morenos), as perguntas giravam em torno da vida pessoal, comida, sexualidade, música etc. Mas não para o negro, porque quem nasce negro neste país primeiro tem que ser negro antes de qualquer coisa. Só sei que o moço foi ovacionado pelos outros participantes devido à seguinte resposta: “Não tem que ter cota para nada”, porque debaixo da pele todo mundo tem sangue, e o sangue é vermelho. Tal declaração enfureceu vários ativistas do movimento negro que lutam pela implantação de medidas políticas que busquem diminuir a desigualdade social do povo negro no Brasil. Vale ler A grande mídia contra as ações afirmativas.

Bom, os negros não demandam cotas porque debaixo da pele é sangue e sangue é igual pra todo mundo, ou porque duvidam de sua própria capacidade de entrar e cursar uma universidade, ou de serem inteligentes. Para os que ainda não perceberam, houve escravidão de negros neste país. O preconceito contra negros é sistemático e muito mais excludente que com quaisquer outros grupos considerados “à margem”. Isso significa que se um homem branco e um homem negro forem disputar uma vaga de emprego, as chances de que seja o branco a conseguir a vaga são bem mais altas. Um exemplo: na região metropolitana de Belo Horizonte, o número de negros desempregados é quase duas vezes maior do que o contingente de não negros na mesma situação.

As cotas são uma política de Estado que tenta amenizar, um pouco que seja, a exclusão de negras e negros no Brasil. É uma política paliativa? Sim. Resolve, de fato, o problema desse tipo de desigualdade? Não. No entanto, para aqueles negros que conseguem entrar numa universidade com o auxílio das cotas, a vida se transforma – e como! Também aumenta a auto-estima dos outros negros, que vêem que a universidade também pode ser um lugar pra eles e não apenas de gente branca e classe média. Ocupando os espaços na universidade, torna-se mais fácil ver negras e negros na televisão e na publicidade com maior frequência. Dessa forma, acabam se percebendo dignos de exposição pública também. E os negros que entram com cota nas universidades apresentam desempenho próximo, similar ou até melhor em relação aos não-cotistas de acordo com o IPEA. Muitos conseguem boas notas, mas não o suficiente para passar em cursos mais concorridos. Não é possível comparar uma pessoa que sempre estudou numa escola particular, com todo o conforto que o dinheiro possibilita, com um negro pobre, que frequenta uma escola capenga. A desigualdade social é tão arraigada por aqui que as pessoas sequer demonstram sensibilidade à realidade da população brasileira.

De acordo com Luana Tolentino, será uma batalha “a ampliação do sistema de cotas nesse país. A briga será dura, longa e árdua pelos seguintes motivos: 1º como propor políticas de Ações Afirmativas para população negra num país que não se assume como racista? 2º Toda e qualquer proposta que tenha como objetivo reparar processos de exclusão encontrarão rejeições por parte da sociedade, uma vez que a manutenção de privilégios e a permanência das desigualdades sociais fazem parte da mentalidade brasileira”. A sociedade exclui os negros e, se não houver uma politica de Estado que inclua os negros no mundo das instituições (escolares, de trabalho etc.), eles vão continuar excluídos.

aluna cotistaMarisa Uthman – Aluna negra cotista da UFRGS. Foto de Leticia Fagundes.

Eu, sendo branca e a favor de cotas pra negros, não me sinto tão à vontade para comentar sobre o que os negros querem e reivindicam, por me considerar meio que “desautorizada” ao debate. No entanto, não deixo de prestar meu apoio a elas e eles. Sim, pois a mulher negra sofre duplo preconceito – por ser negra e por ser mulher – e creio que nós, feministas, temos esse desafio de combater o racismo e manter constantemente em voga as demandas das mulheres negras.

Mas… e o Daniel? Acredito que ele só tenha entrado no BBB porque, certamente, há cotas para negros no programa. Porque não dá para vender um reality show no Brasil só com pessoas brancas. Então, coloca-se um negro para dizer: “não somos racistas”, como apregoa Ali Kamel, atual diretor da Central Globo de Jornalismo. E, tem mais, acredito que Daniel tenha sido selecionado por ser considerado bonito. Visto ser necessário que haja negros no programa, pelo menos que seja um modelo, não é mesmo?

No domingo, entro na internet e já vejo a confusão em torno do caso de violência sexual no BBB. Inclusive assisti ao tal vídeo de Daniel abusando sexualmente de Monique junto com muitas reações de indignação. Não vou adentrar ao assunto de quão machista foi da parte do Daniel, julgar-se no direito de abusar da Monique enquanto ela estava nitidamente bêbada e “apagada” na cama. Para quem conseguiu ver o vídeo, ela parecia uma boneca, imóvel, enquanto Daniel fazia movimentos de vai-e-vem com o quadril encostado ao corpo dela, mesmo que não tenha havido penetração.

Mas a repercussão da cena, em comentários do Twitter e do Facebook, revela, por um lado, o machismo extremo de achar que mulher, depois de beber, quase que pede para ser estuprada e, por outro lado, o racismo de estabelecer uma relação direta e imponderada entre “negros” e “atos negativos/criminosos”. É nessa relação que teço os comentários a seguir.

Daniel abusou da moça não porque ele é negro e negros se caracterizam imanentemente por cometerem atos criminosos, imorais, sujos, pecaminosos, infames etc. Porque há algo geneticamente ruim neles que os fazem cometer ações ruins. A sociedade brasileira se caracteriza por altos níveis de violência, machismo, corrupção. Estupros são recorrências diárias no país, inclusive vários homens brancos estupram suas próprias namoradas e esposas quando as forçam a manter relações sexuais com eles contra sua vontade. Isso também se configura como crime de estupro.

Portanto, Celso Pitta não desviou dinheiro público porque ele era negro, Netinho de Paula não cometeu agressões porque ele é negro e Daniel não bolinou mulheres e as abusou sexualmente porque ele é negro. Além dos fatores sociais, fortes condicionantes, por tantos outros motivos alguém se torna violento e corrupto. Existem pessoas que fazem coisas consideradas ruins de qualquer cor de pele, país, classe social, religião. Responsabilizar a população negra pelos males da sociedade é racismo.

Resumindo vários comentários do Twitter e do Facebook, podemos chegar à máxima: o Daniel abusou sexualmente porque a mulher “deu mole”, “pediu para ser estuprada”, mas, que coisa feia, só podia ser preto mesmo. Há até quem atribuiu, a Daniel, o título nada brioso de “o mau caráter de todas as edições do BBBs”. Mas, fugindo bastante da realidade, o diretor do BBB afirmou ontem que: não houve estupro no BBB e que Daniel é vítima de racismo. No mesmo dia, porém – após a polícia civil do Rio de Janeiro decidir investigar a denúncia de estupro ocorrida no programa e exibida ao vivo para quem assina o payperview – decidiram eliminar Daniel do programa por grave comportamento inadequado. No programa ao vivo da segunda-feira, Pedro Bial limitou-se a repetir o comunicado oficial da emissora. Não falou nada sobre a ação da polícia, sobre como a notícia foi dada a outros participantes. O programa continuou normalmente como se Daniel nunca tivesse existido ali. Como se um abuso sexual não tivesse sido cometido. Daniel, o único participante negro da 12° edição do BBB, desaparece sem deixar vestígio. Ser invisível na vida real ou em um reality show parece ser a realidade de tantos negros e negras no Brasil.

Lógico que o que Daniel fez foi grave, está errado e merece ser punido portanto, mas, por favor, a cor dele nada tem a ver com isso.

* Agradeço à colaboração da Srta. Bia neste post.

 

 

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