“O importante é a diversidade de ideias.”

Ironias para enfrentar gente de má fé e alerta para ingênuos  sobre a diversidade que realmente importa

por: Reinaldo Bulgarelli

Nossas organizações empresariais já não são por demais brancas, branqueadas e branquejantes, masculinas, masculinizadas e masculinizantes, heteronormativas, “davincianas” quanto à imagem do homem perfeito no círculo nada plural da existência?

Se alguém dúvida, basta ler jornais ou, com um pouco mais de interesse, procurar a pesquisa do Instituto Ethos/IBOPE sobre o Perfil das 500 Maiores Empresas no Brasil. Segundo o último estudo, em 2007, tínhamos 96,5% de brancos, 89,5% de homens e 99,6% de pessoas sem deficiência no quadro executivo das empresas. É um lugar no qual são tomadas decisões importantes sobre as atividades da empresa num país plural, diverso, em rápido e profundo processo de mudança.

Eduardo Barros, do Info Money, escreveu que “Se você é homem, de cor branca e de meia-idade, com diploma em um curso superior e sem deficiência física alguma, saiba que está muito mais próximo de conquistar um cargo de direção numa grande empresa brasileira do que qualquer outra pessoa que não se enquadre neste perfil.” Ele não está errado. A conversa sobre mérito, portanto, é mentirosa ou é mal feita. Quero acreditar na segunda hipótese.

Se essa falta de diversidade não é problema para alguns, para muitos significa atraso, incoerência com os próprios valores, prejuízo para as empresas no seu diálogo com o presente e o futuro, os clientes atuais e aqueles que se espera atrair numa sociedade plural e ao mesmo tempo com muitos problemas para aceitar e valorizar sua diversidade.

“O mais importante é a diversidade de ideias” é uma frase repetida com ares de seriedade e quer, talvez, demonstrar compromisso com valores mais profundos, preocupação com o que é realmente importante: a alma. Porque separar o que nasceu junto, corpo e alma? Quem diz esse tipo de coisa se alimenta, passeia pelas ruas, assiste TV ou apenas paira em etéreo lugar?

Eu costumo chamar essa falsa valorização da diversidade de “almificação dos viventes”. E mesmo essa proposta de focar nas almas é engraçada porque não se trata de uma alma com vivências inteligíveis. São “almas cósmicas”, “supraterrestres”, sem história, sem vida, sem nada a dizer.

Numa empresa qualquer, se alguém cruzar nos corredores com alguma ideia flutuando fora de um corpo, melhor chamar a segurança, acionar o alarme e pedir para evacuarem o prédio. Ideias importantes ou as ideias que importam não andam por aí descoladas de um corpo, de um alguém que as concebeu. Seria uma ideia ruim, ingrata ou delinquente ao andar por aí sem seu corpo.

Criticamos Taylor e todos que querem reduzir os trabalhadores, mesmo os moderníssimos trabalhadores da era do conhecimento, a uma mera “mão de obra”, mas essa coisa de dizer que a diversidade importante é a das ideias não é nada diferente. É como se dissessem:

– “O que importa são suas ideias e não você. Pendure todo o resto lá fora e venha já trabalhar, sem trazer sua vida, seu corpo, sua história, suas concretudes, as vivências que o corpo lhe deu, as suas dores, suas alegrias, sua sexualidade, suas crenças, suas contribuições, suas expectativas ou visões de mundo. A tarefa precisa ser realizada e para isso queremos apenas sua alma a serviço do nosso padrão”. Deve ser por isso que falta vida em tantas organizações. A vida como ela é, com qualidades e defeitos, fica do lado de fora.

Há uma empresa na qual grande parte dos negros raspam o cabelo. Eu fico feliz ao ver que nesta empresa, pelo menos, há tantos negros a ponto de serem notados. Por outro lado, fico sempre me perguntando quem foi que mandou os negros rasparem a cabeça. É o racismo impregnado nas paredes. Será que os gestores, mandantes, coniventes ou omissos com o fato, não percebem que junto com os cabelos vão embora as ideias? Ideias e cabelos vivem juntos.

Reprimem os cabelos, desprezam o que é próprio da pessoa e eliminam do cenário uma característica, mas também estão desprezando, eliminando uma possibilidade, uma perspectiva, enfim, a riqueza da diversidade.

Quem deixa de contratar alguém por alguma característica dessas que não lembram uma alma incolor, insípida, amorfa, inodora, indelével, invisível, está também deixando de lado um cliente, um fornecedor, uma comunidade, uma possibilidade de ter sucesso. Alguém em sã consciência pode deixar de lado uma possibilidade?

Toda essa “almificação dos viventes” é coisa de gente que também não deve gostar muito da frase do poeta Paul Valéry: “O que há de mais profundo é a pele.” É na pele que mora a alma. Se não respeitamos nem a pele, quanto mais a alma! É pela pele que somos hierarquizados, jogados, muitas vezes sem mérito algum, no topo das organizações ou, sem reconhecer qualidades na diferença, somos jogados na rua, excluídos ou assassinados.

Por meio de nossas características concretas, corpóreas, como ser branco ou negro, homem ou mulher, alto ou baixo, gordo ou magro, ter 20 ou 50 anos, ser hetero ou gay, possuir ou não deficiência, é que entramos em contato com o mundo e desenvolvemos nossa essência, nossa identidade, trocando, interagindo e não pairando no espaço, longe do nosso tempo e lugar.

No mundo dos negócios, tão objetivo, concreto, por vezes cartesiano demais, a frase das “ideias que importam” soa estranha, mas é uma face da ineficiência e a demonstração cabal de que as ideologias racistas, machistas, homofóbicas, entre outras, transcendem a lógica do lucro.

Nada importa mais do que manter as coisas como estão, o mundo “chique” intocável, a “normalidade” reinante, mesmo que para isso tenhamos que perder dinheiro por desprezar parcelas imensas da população que, aliás, são o tal mercado interno que hoje nos salva das crises internacionais.

As empresas não pairam acima ou isoladas das ideologias. Algumas são mais poderosas que tudo, mesmo afastando as empresas da efetividade, da adição de valor aos acionistas ou ao conjunto de stakeholders, na versão mais sustentável e socialmente responsável.

“A diversidade de ideias é a mais importante.” É frase de gente que está colocando a empresa em situação de alto risco. Leve as ideias “almificadas” para o tribunal quando for pagar multa por racismo, por exemplo, para ver se o juiz aceita essa argumentação com os números da demografia interna que o mercado de trabalho apresenta.Talvez até funcione, mas gente séria não cai nesta conversa.

E a chamada lei de cotas para contratação de pessoas com deficiência? Quando será cumprida se o que importa são as ideias? Quem defende essa proposta irá ajudar a empresa a pagar a multa? Não sentem vergonha de desumanizar o que é humano? Tão poucas mulheres em cargos de liderança! Vamos culpá-las também e dizer que não querem trabalhar, apenas cuidar da própria vida? O mais importante são as ideias… Dos homens, claro!

Por fim, quem diz que o mais importante são as ideias e não essa história de ficar monitorando a demografia interna em relação a raça, cor, gênero e outras “bobagens”, deveria rever seus conceitos. Quer dizer que há empresas contratando pessoas com deficiência, mulheres, negros, homossexuais, pessoas com mais de 45 anos, entre outros, que não têm ideias? Não é estranho? Ou essa afirmação quer dizer que só os homens brancos é que têm ideias ou que só eles têm as ideias que importam?

Se esta diversidade de ideias é mais importante que a outra, a que trata de incluir gente inteira e não pela metade, cindida entre corpo e alma, gente e cultura, porque é que não estão ouvindo suas ideias?

Ou será que estão contratando todas essas pessoas e não estão ouvindo suas ideias?! Isso é desperdício, totalmente contraproducente e indicaria que nossas equipes precisam urgentemente de uma boa capacitação porque estão jogando dinheiro pela janela.

Diversidade cultural é diversidade humana. Não há cultura sem gente e nem gente sem cultura. Nada que afeta a vida dos homens e das mulheres, incluindo o machismo, está fora do mundo ou separado da diversidade cultural. Se diversidade cultural é termo utilizado para falar de outras culturas, sobretudo de outros países, o que é mais chique do que ficar preocupado com o número de mulheres na liderança, cabe lembrar que há homens ou mulheres nos outros países. Sim!

Diversidade cultural ou diversidade de ideias são na verdade novas maneiras de dizer velhas coisas: “estamos pouco ligando se você precisa de rampas para chegar à empresa porque quem nos interessa é quem consegue subir as imensas escadarias que filtram tudo que consideramos ruim por não se parecer conosco e com o que achamos bom”.

Essa cisão entre pessoas e ideias, diferente da ironia que fiz neste artigo, é expressão de cinismo. Não é coisa que pode fazer parte do ideário de qualquer empresa, muito menos de empresas comprometidas com o novo, com a inovação, com a superação de desafios.

Mais que nunca as empresas modernas precisam de pessoas inteiras, íntegras, para encontrarmos conjuntamente, cooperando uns com os outros, as soluções para os problemas que nossas próprias escolhas nos trouxeram. Como garantir sucesso ouvindo apenas algumas ideias e não todas as ideias? Quem está “sobrando” nessa conversa anacrônica, possui ideias que somadas às outras podem fazer toda diferença. Ouça o que as chamadas “minorias” têm a dizer e enriqueça sua vida e sua empresa.


Uso esse termo como sinônimo de discriminação à pessoa com deficiência. Leonardo Da Vinci cristalizou aquela imagem do “homem perfeito” (Homem Vitruviano) em muitas mentes, mas há muitas possibilidades de ser humano. A deficiência é uma delas.

Ver: http://www.uniethos.org.br/_Uniethos/Documents/PesquisaDiversidade2007.pdf

http://www.administradores.com.br/informe-se/informativo/instituto-ethos-traca-o-perfil-dos-executivos-das-grandes-empresas-brasileiras/4070/

Reinaldo Bulgarelli é sócio-diretor da Txai Consultoria e Educação, empresa que assessora empresas em sustentabilidade e responsabilidade social empresarial.

 

 

 

 

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