O incrível hulk negro

Por: Zarcillo Barbosa

 

Hoje vou torcer para Mário Balotelli, goleador da seleção italiana de futebol, na partida decisiva contra a Espanha. Fiquei encantado com a disposição (“raça”) daquele negro de 22 anos, abandonado na maternidade pelos pais ganeses e criado até os dois anos pelos médicos. Adotado pela família Balotelli, com certeza teve o mesmo carinho dedicado aos dois irmãos brancos, “filhos de sangue”, como se diz no Brasil. Hoje, os irmãos são seus procuradores e Balotelli dedica gols à mãe adotiva, a quem fez questão de abraçar entre a torcida no estádio.

O mais importante dessa saga toda, muito além dos dois gols contra a desmistificada seleção alemã, foi o desabafo do craque diante de toda uma existência de humilhações fora da família. O racismo europeu é cruel. Jogam bananas para os adversários negros. Cada gol tem uma celebração para Balotelli. No primeiro jogo foi substituído logo após perder uma oportunidade de gol. O técnico italiano Cesare Prandelli nem teve preocupação de disfarçar a punição pelo erro, em meio aos cantos racistas da torcida adversária. No jogo seguinte, Balotelli garante a vitória com o seu gol e faz um gesto girando o dedo indicador, como a dizer ao seu técnico: “Me substitui agora!”

O companheiro de equipe tapa sua boca com uma das mãos, para impedir que os impropérios possam prejudicá-lo. Os movimentos labiais captados pelas câmeras podem ser “lidos”. No jogo de classificação para a final, o gigante negro dispara um pelotaço que estufa as redes do goleiro alemão. Na comemoração, retira a camisa e contrai os músculos do peito em um gesto imitando o Incrível Hulk. O super herói criado por Stan Lee e Jack Kirb (1962) para as histórias em quadrinho da Marvel sempre representou a luta feroz contra as forças do mal.

A dominação totalitária do colonialismo europeu na África, no século 19, representa hoje uma dívida que os cidadãos da União Europeia se negam a pagar. Gana, de onde imigraram os pais de Balotelli, foi ocupada por europeus e escandinavos. A população foi dominada e o território desmembrado. Os invasores alimentaram o ódio tribal em proveito próprio, sob argumentos racistas. Para os europeus, os povos colonizados jamais ascenderiam à condição de seres humanos à altura da civilização ocidental. Abandonados à própria sorte no século passado, depois de intensa exploração das suas riquezas e em meio a guerras tribais, a Europa reluta até hoje em receber imigrantes negros. Muitos deles, como os pais do artilheiro, sequer poderiam lá continuar face às atrocidades cometidas entre tribos rivais. Balotelli conseguiu receber a cidadania italiana somente aos 18 anos. Joga no Manchester City, da Inglaterra.

No Brasil, tivemos a colonização portuguesa. De início quiseram transformar os índios em cristãos. Dessa forma, eles se tornavam “seres humanos”, como eu e você. Depois vieram os negros, “mais dóceis” ao trabalho. Hoje, temos no mundo o problema do colonialismo sem colonos. A intervenção dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão é um neocolonialismo. Uma forma de regressão ao colonialismo europeu do século 19. O racismo continua. O discurso antirracista é fácil, porque é fácil ser antirracista. Os filósofos de língua inglesa chamam isto de “wishfull thinking” – pensamentos contaminados por desejos escondidos.

Entretanto, diante de situações de desigualdade, de concorrência, a primeira reação dos indivíduos é racista. Veja a questão das cotas nas universidades. A democracia racial no Brasil é um mito. Há resistência para enfrentar os erros, para liberar os tabus da história. O dever de memória pode ser exercido reconhecendo-se os prejudicados em todos os níveis. No Brasil, também já tivemos nossos doidos maravilhosos. Garrincha foi chamado de “Alegria do Povo”. Dele, o poeta Carlos Drummond de Andrade dizia que estava incumbido por um Deus irônico para “zombar de tudo e de todos”. Pelé foi outro ídolo de ébano a provar que a superioridade branca não existe. Quem sabe Romarinho possa confirmar o novo herói a celebrar o gol, como obra de arte.

O autor, Zarcillo Barbosa, é jornalista e colaborador do JC

 

Fonte: JC Net

+ sobre o tema

Presidente de Portugal diz que país tem que ‘pagar custos’ de escravidão e crimes coloniais

O presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, disse na...

O futuro de Brasília: ministra Vera Lúcia luta por uma capital mais inclusiva

Segunda mulher negra a ser empossada como ministra na...

Desigualdade ambiental em São Paulo: direito ao verde não é para todos

O novo Mapa da Desigualdade de São Paulo faz...

Foi a mobilização intensa da sociedade que manteve Brazão na prisão

Poucos episódios escancararam tanto a política fluminense quanto a...

para lembrar

Um ano depois da eleição, Obama é aprovado por 54% dos americanos

Fonte: G1 - Já 45% deles desaprovam o presidente, segundo...

Filmes infantis perpetuam estereótipos sociais e de gênero

Pesquisas mostram que as animações legitimam a desigualdade social...

SP vai limitar trabalho de grávidas em escola e hospital devido à gripe suína

Fonte: Folha de S.Paulo O governo de São Paulo...

Obama: Sim, ele pode, mas menos do que dizia

por: Clovis Rossi - Nove de cada dez analistas americanos...

MG lidera novamente a ‘lista suja’ do trabalho análogo à escravidão

Minas Gerais lidera o ranking de empregadores inseridos na “Lista Suja” do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A relação, atualizada na última sexta-feira...

Conselho de direitos humanos aciona ONU por aumento de movimentos neonazistas no Brasil

O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, acionou a ONU (Organização das Nações Unidas) para fazer um alerta...

Brizola e os avanços que o Brasil jogou fora

A efeméride das seis décadas do golpe que impôs a ditadura militar ao Brasil, em 1964, atesta o apagamento histórico de vários personagens essenciais...
-+=