Para pesquisadora, mito de ‘país tolerante’ silencia debate sobre racismo na Holanda

Carolina de Assis

Patricia Schor, da Universidade de Utrecht, condena tradição natalina holandesa do “Zwarte Piet” e faz paralelo com Brasil: negro só aparece como subalterno

O debate sobre a herança colonial e o racismo na Holanda é reaceso a cada ano nos meses de novembro e dezembro, quando o personagem Zwarte Piet, ou “Pedro Preto”, aparece nas vitrines de lojas decoradas para o Natal em todo o país.

De acordo com o folclore holandês, os Zwarte Piets são os ajudantes do Sinterklaas, ou São Nicolau, figura análoga ao Papai Noel. Nas paradas natalinas realizadas em várias cidades, o personagem é encarnado por pessoas brancas, que fazem uso de “blackface” (maquiagem que cobre o rosto de negro) batom vermelho que realça os lábios, perucas de cabelos crespos e brincos de argola dourados. Se grande parte da população holandesa não vê problema na representação do Zwarte Piet, por outro lado, ele é considerado uma caricatura racista por vários movimentos sociais, que há anos protestam contra o personagem e ressaltam a necessidade da discussão sobre o racismo na sociedade holandesa.

A questão voltou à baila no país na última quarta-feira (12/11), quando o Conselho de Estado holandês — o mais alto tribunal do país — divulgou decisão sobre o recurso apresentado pela prefeitura de Amsterdã em prol da realização da parada anual de Sinterklaas na cidade, o maior evento natalino do país. O recurso foi apresentado após sentença do Juizado Administrativo de Amsterdã do início de julho que considerou o personagem Zwarte Piet “ofensivo” e “perpetuador de estereótipos racistas”, exigindo que o prefeito Eberhard van der Laan reconsiderasse a realização do desfile na cidade. O Conselho de Estado, entretanto, julgou anteontem que a questão do racismo não compete ao prefeito, e se absteve de estipular se o personagem tem ou não caráter racista.

Em entrevista a Opera Mundi, Patricia Schor, pesquisadora da Universidade de Utrecht e especialista em pós-colonialismo e racismo, argumenta que o personagem remete ao passado colonial e escravocrata da Holanda e reforça a discriminação contra pessoas negras no contexto atual do país: “Não somente o Zwarte Piet carrega esta herança de desumanização do negro, como ele reafirma também a posição marginal que a população negra tem na Holanda contemporânea”. Schor, que é brasileira e vive na Holanda há 20 anos, vê semelhanças entre os dois países: segundo ela, apesar de terem sido construídos sobre a exploração da mão de obra de pessoas negras escravizadas, ambos se baseiam em mitos de formação nacional que permitem a negação do racismo.

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Leia abaixo os principais trechos da entrevista com a pesquisadora:

Opera Mundi: Você considera a figura do Zwarte Piet racista?
Patricia Schor: A figura do Zwarte Piet é um elemento “novo” na festa do Sinterklaas, uma tradição vinda da Idade Média. O Zwarte Piet é uma caricatura de um negro vestido como escravo doméstico, que foi adicionada à tradição somente no século 19, ainda antes da abolição da escravidão nas colônias holandesas. Nesta época circulavam figuras correspondentes ao Zwarte Piet em outros espaços coloniais e imperiais, como o Golliwog no Reino Unido, e os Minstrel Shows nos Estados Unidos, ambas figuras impensáveis no espaço público destes países hoje em dia. A pintura da época também está repleta de figuras de negros como escravos domésticos que, afinal, serviam como símbolo de status social da família “proprietária”.

Desde o século 18 o negro foi objetificado na cultura europeia como elemento sexualizado, desejado, e animalizado, temido. Não somente o Zwarte Piet carrega esta herança de desumanização do negro, como ele reafirma também a posição marginal que a população negra tem na Holanda contemporânea.

OM: Você vê algum paralelo entre Zwarte Piet e o racismo na sociedade holandesa e o racismo na sociedade brasileira?
PS: A sociedade holandesa, assim como a brasileira, se considera não racista por nascimento. É como se fosse impossível conceber o racismo em tais lugares. Imagine o Brasil, um país para onde foi levado forçosamente o maior contingente de negros escravizados no comércio transatlântico, um país construído sobre o trabalho da mão de obra escrava, um país cuja estrutura social pouco mudou desde então; como conceber um país com esta herança como imune ao racismo? Criou-se o mito luso-tropical da harmonia racial, firmemente enraizado e repleto de adeptos até hoje em terras brasileiras e lusitanas. Imagine a Holanda, um país que enriqueceu vertiginosamente com o comércio marítimo, um país que colonizou e explorou populações indígenas, um país que participou direta e indiretamente do comércio de negros escravizados; como conceber tal país como imune ao racismo? Construiu-se o mito de uma tolerância nata e, como no Brasil, não se permitiu que o negro adentrasse o espaço público senão como subalterno. Quem fala e reforça o mito é o branco, detentor do poder, da propriedade e da voz. O Zwarte Piet materializa mito e realidade: o holandês branco faz festa desumanizando e ridicularizando o negro. Ele, o branco, pode, já que todos sabem que ele, por definição, não pode ser racista, pois nasceu holandês. E que ninguém ouse questionar a prática racista; afinal, quem é proprietário deste país?

No Brasil, o Zwarte Piet é, entre outras, a imagem do Mussum falando errado, ou a figura do “negro burro” em teoria engraçado, uma graça que todos nós temos que compartilhar, e que quem não compartilha não tem graça. Isso em um país onde os índices de homicídio de jovens negros, estes mesmos negros que são objeto de galhofa, permitem-nos falar do “genocídio do negro brasileiro”, uma expressão que o escritor e ativista Abdias do Nascimento cunhou três décadas atrás. Para não falarmos da segregação e discriminação que tocam os demais aspectos da vida da população preta e parda do Brasil. Na Holanda, a violência é menor e mais escondida, enquanto a questão da representação racista é um pouco mais acintosa, com o Zwarte Piet como mascote nacional, como assunto de Estado. Mas a herança colonial é a mesma.

OM: Como você avalia a resistência de parte da população holandesa às alegações dos opositores ao Zwarte Piet?
PS: A população holandesa, notadamente a maioria branca, acredita ter o monopólio sobre a cultura e sociedade holandesas. Os não-brancos, provindos das ex-colônias holandesas, e os demais imigrantes não-ocidentais (note que o Brasil também é considerado não-ocidental) sempre foram e continuam sendo considerados cidadãos de segunda categoria. Destes se espera o agradecimento incondicional por terem sido recebidos neste “paraíso” onde são marginalizados e tolerados como se fossem hóspedes indesejados. A luta desses holandeses pela participação verdadeira e pelo exercício da cidadania plena enfurece os holandeses brancos. Esta fúria tem sido direcionada aos ativistas antirracismo mais vocais, e primordialmente aos ativistas negros.

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OM: Como a sociedade holandesa deveria lidar com a figura do Zwarte Piet? Ela deveria ser banida, alterada ou discutida?
PS: A sociedade holandesa deveria ter dado ouvidos aos holandeses negros que iniciaram o ativismo contra o Zwarte Piet décadas atrás, em vez de tê-los intimidado, marginalizado e silenciado. As escolas primárias deveriam ter banido esta caricatura racista do currículo escolar; as prefeituras, das festas públicas; as lojas, das vitrines. Sempre houve ativismo direcionado a cada uma destas instituições, ativismo que continua a existir, mas muito pouco mudou. Por isso levamos o caso à Justiça. Desde então o racismo virou o tópico mais discutido no país. O movimento contra o Zwarte Piet está intimamente ligado a outras manifestações de racismo na sociedade holandesa, como levantado pelo recente relatório do Conselho da Europa: segregação nas escolas e no acesso à moradia, discriminação no mercado de trabalho, discriminação racial como prática da polícia, uma legislação de imigração e asilo que busca os limites do possível e do ético e um clima político xenófobo. O debate é necessário, principalmente porque foi silenciado sob a cortina de um país tolerante, o que é somente em parte verdade e, em grande parte, mito. Porém é preciso, além da conversa, mudar. Assim que o sistema legal confirmar que o Zwarte Piet é uma manifestação racista, ele será banido das instituições públicas, e as privadas irão acompanhar a mudança. Assim, as crianças negras não serão mais xingadas de Zwarte Piet na escola, e as crianças não-negras aprenderão a viver de forma respeitosa e humana, em sociedade.

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OM: Como você avalia a decisão do Conselho de Estado holandês sobre o personagem Zwarte Piet e a parada de Sinterklaas em Amsterdã?
PS: O Conselho de Estado é um órgão conservador que, por via de regra, se posiciona em defesa do Estado holandês. Como já esperávamos, o Conselho deu razão ao prefeito de Amsterdã, que se recusou a considerar a “questão do racismo” quando julgou o pedido de autorização para a parada do Sinterklaas, que desfila pela cidade no seu cavalo branco, acompanhado de seus setecentos e tantos Zwarte Piets. Segundo o Conselho, as questões ligadas ao respeito ou não aos direitos fundamentais estão fora do escopo do prefeito quando este julga pedidos para a realização de eventos no espaço público. Assim, o Conselho anula a decisão da Corte de Amsterdã, que havia exigido que o prefeito levasse a questão do racismo em consideração, e havia afirmado que o Zwarte Piet é um estereótipo racial negativo. O Conselho de Estado se negou a confirmar ou negar o caráter racista do Zwarte Piet, e indicou que o prefeito de Amsterdã também não é a autoridade que deve fazer este julgamento. Segundo o Conselho, alegações de racismo em um evento público devem endereçar os organizadores do evento, não a prefeitura que o autoriza, e devem ser direcionadas à corte civil ou criminal.

Assim, após décadas de luta contra a manifestação mais evidente de um racismo enraizado nas instituições holandesas, estas mesmas instituições – públicas, inclusive – continuam a ter carta branca do Estado para manter uma caricatura racista como elemento central na cultura pública holandesa. O Zwarte Piet está presente de forma massiva na sociedade holandesa na época das festas – em lojas, programas de TV, filmes, escolas, livros – e é direcionada ao público infantil. Deste modo se garante a doutrinação de uma nova geração de holandeses para o racismo.

 

Fonte: Ópera Mundi

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