Por que ensinar relações étnico-raciais e história da África nas salas de aula?

Já faz alguns anos que se fala da importância de a Educação brasileira incorporar temáticas relativas à História da África e da Cultura Afro-Brasileira nos currículos escolares. Esse foi, justamente, o objetivo da Lei 10.639/03, sancionada pelo ex-presidente Lula no início de seu mandato. Conforme aponta a professora Nilma Lino Gomes (2008), mais do que uma iniciativa do Estado, esse marco legal reflete uma vitória do movimento negro na luta contra o racismo. Mas, afinal, o que a escola tem a ver com isso e por que essa lei existe?

Gradyreese via Getty Images

Reflitamos, por um momento, no que aprendemos sobre a África, a cultura de matriz afro-brasileira e negros/as na escola. Além da escravidão, quase nada – a não ser que o/a leitor/a tenha tido a felicidade de encontrar um ou uma docente com preparo e disposição suficientes para lecionar esses temas.Caso contrário, a implantação curricular de uma parte importante e, diria mais, estruturante, da história e cultura brasileira fica relegada a uma função decorativa. Fala-se da escravidão, do tráfico de escravos, do abolicionismo, e só.

Vivemos em uma nação em que uma sutil maioria da população é composta de pretos e de pardos (que, somados, constituem a categoria “negros”). Entre os demais, a maior parte são brancos miscigenados. Discutir as relações étnico-raciais que construíram esse país, logo, deveria ser uma obrigação de todos os cidadãos, não importando sua origem ou etnia. São esforços que não apenas se somam na luta contra o racismo, como também na consolidação da democracia, da promoção da cidadania e no reforço à igualdade social e racial. Dado que a escola é um local privilegiado para a transmissão de conhecimentos que vieram desde as gerações anteriores, ela também se torna um dos focos do movimento negro. De uma forma ou de outra, o currículo escolar seria trazido à tona.

Essa é a intenção da Lei 10.639/03 – que posteriormente foi complementada pela Lei 11.645/08 para incluir também a questão indígena. O que a sociedade, então, ganharia com a inclusão de um debate profundo sobre história africana e cultura afro-brasileira? Conhecer a história mundial é essencial para entender o que é o Brasil no contexto das relações globais. Porém, da forma como é tratada hoje, o que se convencionou chamar de História Geral é basicamente uma narrativa europeia ou, no máximo, euro-americana (do Norte). Nem a América Latina, nosso próprio continente, é adequadamente discutida. Quanto mais um continente relegado a uma imagem estereotipada, folclorizada e pejorativa como a África.

Além disso, compreender a África desfaz a noção primária de que, naquele continente (do qual não sabemos sequer os nomes dos países), só existe miséria, fome, doenças endêmicas, guerras “tribais” e atraso. A riqueza cultural, étnica, linguística, artística, intelectual, bem como as nuances de uma história tão complexa quanto o nó que reconhecemos em uma Europa ou Estados Unidos, são deixados de lado. A África, sem sombra de dúvidas, torna-se o bode expiatório de nossa cegueira internacional, a nossa ignorância orgulhosamente ostentada em preconceitos. Nesse sentido, já se passou da hora de olhar a história mundial com outros olhos, até para entender nossa situação presente com maior cuidado e atenção.

“Essa revisão histórica do nosso passado e o estudo da participação da população negra brasileira no presente”, sugere Gomes (2008, p. 72), “poderão contribuir também na superação de preconceitos arraigados em nosso imaginário social e que tendem a tratar a cultura negra e africana como exóticas e/ou fadadas ao sofrimento e à miséria”. Em outras palavras, a sociedade se beneficiaria em muitos sentidos: tanto pedagógicos, no tocante a uma visão mais afirmativa da diversidade étnico-racial, quanto políticos, na problematização das relações de poder que marcam os diferentes segmentos da população.

Justamente, essas relações de poder – que salvaguardam os brancos em um estatuto de neutralidade, acima de qualquer suspeita, e associado a espaços de prestígio – têm um efeito direto na constituição de subjetividades dos/as negros/as. Trocando em miúdos, as desigualdades que herdamos nessa sociedade influenciam no modo pelo qual negros (e brancos) se veem como sujeitos. Têm-se demonstrado que, mesmo em contextos sociais equivalentes, as experiências de brancos e negros em função de sua cor/raça são distintas. Poderia não ser, mas o estrago já foi feito e cabe a nós dedicarmos esforços contínuos e profundos almejando a reparação.

 

Voltando aos conteúdos que estudamos sobre questão racial na escola, há de se ressaltar que reduzir a abordagem desta questão ao fenômeno da escravidão é um viés bastante problemático. A impressão que fica é que os negros surgiram de um ambiente sem uma cultura prévia, capturados da escuridão de um algum lugar da “África”, e trazidos ao Brasil na condição naturalizada de “escravos”. Ora, homens e mulheres que foram forçados a trabalhar em condições degradantes até o século XIX não eram apenas escravos, e simescravizados – seres humanos extraídos à força para alimentar um mercado deplorável.

Ainda, esse período trágico da história brasileira e mundial parece ser apresentado como se não guardasse nenhuma relação com o presente. Dá a impressão de que existiu no passado, sem ligação com o sistema econômico e político, e foi abolido por uns pequenos esforços abolicionistas, dentre os quais a atuação do Zumbi dos Palmares e da Princesa Isabel. Trata-se de um retrato absolutamente despolitizado da escravidão, abordada como uma página virada, uma gravura isolada de Jean-Baptiste Debret, uma fatalidade que foi em seguida corrigida.

Por essas e outras, uma perspectiva mais refinada da história africana e da cultura afro-brasileira, ambas presentes em praticamente tudo que compõe essa nação, é um importante passo naeducação para as relações étnico-raciais. E aqui Gomes (2008) enfatiza a faceta das relações, no sentido que envolvem mais de um sujeito, são datadas historicamente, e permitem que se enxergue tanto a produção dos privilégios quanto das opressões.

E aí surgem outras perguntas: os docentes estão preparados para essa empreitada? Como trabalhar isso em sala de aula? Essas são questões que fogem do escopo deste texto, até porque eu não me atreveria a fornecer um manual prático. No entanto, adianto que há denúncias de que a formação de professores é precária no que diz respeito às questões étnico-raciais. É fato que essas temáticas são superficialmente abordadas em cursos de Pedagogia e Licenciatura pelo país. Um primeiro esforço, talvez, seja incorporar esses temas no ensino superior para, em médio e longo prazo, gerar um corpo de conhecimentos para quem se aventura na sala de aula.

Em seguida, é valido salientar que muitos temas pertencentes a essa discussão já estão dentro escola. A prática de capoeira, samba ou hip hop, religiões como umbanda ou candomblé, a estética negra, exemplos de negros em posições de sucesso, comentários sobre o 20 de novembro, ofensas de cunho racial, entre outras, são elementos que muito provavelmente surgem com alguma recorrência nas escolas. Eles podem ser utilizados como trampolins para se aprofundar as temáticas, além de partirem da vivência das próprias crianças e jovens. Cultura afro-brasileira, portanto, não se trata de um tema alienígena. Ele já está presente, esperando para ser abordado.

Finalizo, assim, reiterando a importância de se ensinar relações étnico-raciais não apenas visando a atender as demandas de um segmento, por sua vez significativo da população, senão com o objetivo de promover, aos poucos, uma alternativa à forma como a própria sociedade se enxerga.Valorizar a cultura afro-brasileira como um componente nacional, estudar a história mundial com um olhar menos eurocêntrico, compreender as lutas do movimento negro pela igualdade social e racial no país, bem como pela superação do racismo, são etapas dessa transformação. Esses são passos que interessam a todos/as e que vão além da escola, sem dúvida. Mas é nela também que concentramos algumas das alternativas nessa frente de tantos caminhos.

 

 

 

 

Fonte: Ensaios de Gênero

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