Política é revolucionária por reivindicar equidade num sistema alimentado por desigualdades
Por Cida Bento, da Folha de São Paulo
“Eu não quero ser tratado como alguém que usurpou a vaga de um estudante branco, como costuma ocorrer aqui na universidade. Por isso não disputei uma oportunidade pelo sistema de cotas.”
Essa foi a resposta de um dos estudantes negros pesquisados por Oliveira, em 2017, em São Paulo, na sua dissertação de mestrado, em que buscava entender por que alguns jovens que poderiam concorrer pelas cotas não o fizeram.
Assim, neste novembro, Mês da Consciência Negra, quero destacar o desconhecimento sobre o efeito “democratizante” das ações afirmativas no ensino superior.
Não é comum as pessoas se atentarem ao fato de que os programas de ações afirmativas no ensino superior implementados no Brasil a partir da ação do movimento negro vêm beneficiando outros segmentos sociais, tais como indígenas, pessoas com deficiência e inclusive jovens brancos pobres, que ficam invisibilizados nesse processo.
Cotistas negros, em grande parte das vezes, são os mais atingidos pelas reações agressivas.
Pode-se exemplificar com o ProUni (Programa Universidade para Todos), que em toda a sua existência atingiu, em média, metade de jovens negros e negras. A outra metade pertencia a outros segmentos.
O ProUni nasceu de demandas do segmento negro, tanto quanto as iniciativas por cotas raciais que se transformaram em cotas sociais, na maioria das universidades em que foram implantadas.
Sob o olhar da branquitude, a alteração dessas propostas sempre foi defendida para incluir outros segmentos, mesmo os que não sofreram a violência racial. E o protagonismo negro na proposição dessa política é invisibilizado.
A política de ação afirmativa —medidas especiais e temporárias, tomadas pelo Estado e/ou pela iniciativa privada para eliminar desigualdades historicamente acumuladas— hoje está implementada em todas as universidades federais e avança nos programas de mestrado e doutorado.
Sem dúvida, o cenário atual é desafiador, com o sucateamento das universidades, a redução drástica dos programas de apoio e permanência de estudantes e a reação agressiva ao aumento da presença de universitários negras e negros. Mas as ações afirmativas abriram um espaço inegável, num território antes só frequentado pela elite.
Elas deveriam atingir também o serviço público, segundo a lei 12.990/2014, mas o fazem de maneira restrita. Um exemplo são os concursos públicos para docentes de universidades federais, cujas reservas de vagas para negros não chegam a 5%, muito abaixo dos 20% determinados pela lei.
A crise no mercado de trabalho agrava essa situação, levando os profissionais que conseguem completar o curso superior a posições precarizadas, e aqueles com baixa escolarização, à informalidade.
Questionamentos sobre a “meritocracia e a perda da excelência das instituições” com as políticas de ação afirmativa ignoram as inúmeras pesquisas que revelam, no mínimo, similaridade entre o conhecimento e o desempenho de alunos cotistas e não cotistas.
Ou pesquisas que revelam que programas de equidade e diversidade em instituições públicas ou privadas ampliam a inventividade e a produtividade.
Ações afirmativas são revolucionárias por reivindicar equidade num sistema político, econômico e social que se alimenta das desigualdades, da crescente concentração de renda na mão de poucos e por colocar em cena novos atores e atrizes sociais que disputam outra perspectiva de sociedade e de desenvolvimento.
Mas, em tempos de apologia ao ódio, são elas expressão de amor pelo Brasil, pois lutar por educação e trabalho de qualidade para todas as pessoas significa investir na construção de uma sociedade na qual o bem-estar de cada um é um valor primordial.