A Bahia reconhecida desde suas origens como terra de tantos brasileiros ilustres, nas mais diversas áreas profissionais, alguns cujos nomes são mencionados com orgulho, sempre contribuiu através desses seus filhos para o engrandecimento e progresso de nosso País. São tantos que é de se entender que alguns daqueles que somente foram responsáveis por importantes feitos longe de sua terra natal, às vezes não são lembrados ou até conhecidos por seus próprios conterrâneos.
Temos a mais absoluta certeza de que pouquíssimos baianos sabem o que a famosa estrada de ferro que liga Curitiba, a bela e moderna capital paranaense, ao litoral e a um dos mais importantes portos marítimos brasileiro, tem a ver com a Bahia, ou com os baianos de modo particular. Porém, basta uma atenta visita ao Museu Ferroviário curitibano, para entender a razão dessa relação e de nosso tema.
Fazendo a ligação da cidade de Curitiba com o porto de Paranaguá, a ferrovia serpenteia por entre túneis, sobre profundos abismos e cortando uma belíssima reserva de Mata Atlântica vencendo a imponente Serra do Mar, conjunto de montanhas que limita o planalto paranaense do litoral.
De acordo com o “Livro Comemorativo dos 80 anos da Ferrovia”;
“A estrada de ferro Curitiba – Paranaguá é a comprovação do poder imaginativo e poético de Antônio Rebouças, transplantado para o teatro da mais viril, ousada e impressionante construção, graças ao espírito intrépido e indomável do engenheiro Teixeira Soares. É considerada até os dias atuais a mais temerária idealização e obra da engenharia nacional.”
A construção dessa ferrovia poderia ter uma história como outra qualquer, não fosse o fato de haver sido idealizada por dois irmãos engenheiros nascidos na Bahia e por serem negros em pleno século XIX quando ainda se vivia o regime escravagista no Brasil Imperial. Antonio Pereira Rebouças Filho nasceu na Cidade do Salvador aos 13 de junho de 1839, enquanto André Pinto Rebouças nascera em 13 de janeiro de 1838. Ambos e mais seis irmãos, eram “filhos legítimos” do deputado negro e autodidata Antonio Pereira Rebouças, filho de uma escrava alforriada e de um alfaiate português, que obtivera o direito de advogar em todo o País, representante da Bahia na Câmara dos Deputados em diversas legislaturas e ainda Conselheiro do Império. Era casado com dona Carolina Pinto Rebouças e tiveram outros seis filhos. Monarquista, diante das atribulações políticas da época, o chefe da família se vê obrigado a mudar-se com mulher e filhos para o Rio de Janeiro no ano de 1846.
Na capital imperial os meninos tiveram educação exemplar e logram estudar na Escola Militar onde são matriculados em março de 1854 e depois na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, onde Antonio passa a se destacar fazendo com distinção os exames exigidos para o curso de Engenharia. Antonio e André dedicaram-se por dois anos – 1861 e 1862 – aos estudos de Engenharia em Caminhos de Ferro e Portos de Mar, na França e na Inglaterra. Voltam para o Brasil em fins de 1862, chegando ao Rio de janeiro e no mesmo ano Antonio é nomeado para inspecionar as obras das fortificações de Santos, Paranaguá e Santa Catarina.
Enquanto as “maiores autoridades técnicas da época” continuassem a demonstrar seus descréditos quanto ao êxito de tão arrojados planos, a ponto de seu construtor inicial Giusepe Ferrucini haver desistido da obra ainda no quilômetro 45, ao nível do mar, considerando-a impossível de ser construída. Coube então ao engenheiro Teixeira Soares jovem engenheiro brasileiro, com apenas 33 anos de idade juntamente com o também jovem engenheiro Pereira Passos seguir firme em sua convicção de que o sonho dos baianos poderia ser realizado.
A Estrada de Ferro Curitiba – Paranaguá teve seu início de construção em março de 1872 dividida em três trechos de extensões diferentes que totalizam 110 km. O primeiro trecho, na baixada ao nível do litoral, foi inaugurado em 1883. Ao todo a ferrovia possui 450 obras de arte, entre pontes e viadutos das mais diversas extensões, dentre as quais se destaca a Ponte de São João com 55 metros totalmente construída na Inglaterra para ser montada, peça por peça, sobre um profundo grotão e o Viaduto Carvalho que está ligado ao túnel do Rochedo, assentado sobre 5 pilares de alvenaria engastados na própria rocha da encosta. Ao todo são 14 túneis perfurados nas montanhas, possuindo um deles cerca de 500 metros.
Depois de cinco anos de construção, aquele projeto visto como impraticável por engenheiros europeus, foi finalmente finalizado. Porém, dos nove mil homens que participavam da empreitada, aproximadamente cinco mil vieram a falecer devido às doenças típicas da floresta e outros perigos que enfrentaram. Foram utilizados trabalhadores de origem alemã, polonesa, italiana, africana, entre outros camponeses que haviam abandonado a atividade agrícola em busca da remuneração melhor oferecida pela empresa construtora. A estrada foi considerada totalmente concluída e inaugurada no dia 2 de fevereiro de 1885, treze anos após haver sido iniciada.
A Ferrovia Curitiba-Paranaguá, é uma obra cujos índices de segurança foram os mais seriamente considerados permitindo sua utilização até os dias atuais, como principal caminho paranaense de transporte de grãos até o porto de Paranaguá, quando são utilizados até 90 vagões carregados com as mais diversas riquezas agrícolas da região. Considerada uma das mais belas viagens turísticas da região sul, diariamente são transportados visitantes das mais diversas origens em um passeio inesquecível. Muitos desses turistas, oriundos da terra natal dos idealizadores dessa obra fantástica, sequer sonham que seus compatriotas foram responsáveis por sua existência.
Com a deflagração da Guerra do Paraguay, sendo 2º tenente do exército, é convocado para atuar no conflito na qualidade de engenheiro militar. Serviu em campo de guerra de maio de 1865 até julho de 1886, desenvolvendo para o exército o projeto de um torpedo que foi utilizado com sucesso. Por motivo de saúde é obrigado a retornar ao Rio de Janeiro. Reiniciando suas atividades, amante da música erudita, incentivou a carreira do jovem Carlos Gomes apoiando-o na composição da ópera “O Guarani”, que apesar de não ser a maior ou melhor obra desse compositor, com sua estréia em 1870 foi a que o imortalizou, ganhando projeção internacional pois se tratava da primeira do gênero com marcante característica brasileira, na qual os índios tinham o papel de primeiro plano.
Sobre essa obra, conta-se que sua inspiração nasceu na ocasião em que Carlos Gomes estava em Milão e andando pela Piaza Del Duomo ouviu um garoto apregoando “Il Guarani! Il Guarani! Storia interessante dei selvaggi Del Brasile!”, uma tradução do romance de José de Alencar. Conta-se ainda que Giuseppi Verdi, consagrado compositor italiano disse de seu autor na noite em que viu a peço: “Este jovem começa de onde eu termino!”.
Em sua especialidade André realizou no Rio de Janeiro várias obras que lhe conferiram projeção como engenheiro civil, a exemplo do plano de abastecimento de água para a cidade, durante a seca de 1870, a construção das docas da Alfândega e das docas D. Pedro II. Permaneceu nessa atividade de 1866 até novembro de 1871, quando inesperadamente se demite.
Após a morte do irmão Antonio em 1874, muito abalado, resolve tomar parte de sociedades empenhadas na luta contra o trabalho escravo no país. Engajado na campanha abolicionista, ao lado de Machado de Assis e Olavo Bilac, foi um dos representantes da classe média brasileira com ascendência africana e uma das vozes mais importantes em prol da abolição. Participa da fundação de algumas dessas sociedades, tais como a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão e a Sociedade Abolicionista, criadas juntamente com seus alunos da Escola politécnica. No ano de 1883 após viagem aos Estados Unidos e Europa retorna resolvido a dar continuidade às campanhas contra a escravidão no Brasil, já animadas pelas manifestações de rua e pelos debates parlamentares.
A abolição assinada pela Princesa Izabel acirrou os ânimos dos grandes proprietários de terras, culminando com o movimento militar de 15 de novembro de 1889 e a proclamação da República.
Fiel ao Imperador D. Pedro II e ao regime monárquico, André embarca juntamente com a família imperial no paquete Alagoas com destino ao exílio na Europa.
Inicialmente André permanece em Lisboa, com intensa atividade como jornalista correspondente do “The Times” de Londres. Porém logo transfere-se para Cannes, na França onde fica até a morte de D. Pedro II. Financeiramente arruinado aceita emprego em Luanda em África por pouco tempo, mudando-se posteriormente para Funchal, na Ilha da Madeira, em meados de 1893.
André jamais retornaria à Europa ou à sua terra natal. Seu precário estado de saúde e intenso abatimento pelo exílio cercam de mistério sua morte aos 60 anos. Há apenas o triste relato de que no dia 9 de maio de 1898, seu corpo foi resgatado em uma praia, na base de um penhasco de cerca de 60 metros de altura, junto ao mar e próximo do hotel onde vivia. Ali havia passado seus últimos dias, contemplando o cair do sol no horizonte, talvez sonhando com sua Pátria tão distante.
Desse modo melancólico se encerra esta bela página da vida de dois jovens engenheiros baianos que merecem ser lembrados, ainda que tardiamente, por seus conterrâneos.
Fora da Bahia o valor dos irmãos Rebouças é reconhecido com denominações em importantes obras de engenharia e outras formas. Por exemplo; em São Paulo existe a Av. Engenheiros Rebouças e no Rio de Janeiro o túnel Rebouças. No estado do Paraná existe um município que surgiu em torno de uma estação de trens que foi batizada com o nome de Antonio Rebouças e em Curitiba o bairro central no qual está localizada a antiga Estação de Estrada de Ferro, anexada com sua estrutura original à um luxuoso Shopping, chama-se Rebouças.