Leonardo Sakamoto
A repórter Ana Aranha foi ao Sul do Amazonas para retratar a situação de Nilce, liderança entre pequenos produtores rurais, marcada para morrer por denunciar madeireiros e grileiros. Nilce conta com proteção do Estado, mas acredita que vai ser assassinada mesmo assim: “Eles vão me matar”. Saiba o porquê no post abaixo, que Ana escreveu especialmente para este blog:
“Eu não tenho medo de morrer, mas não quero morrer de graça. Também não sei que bem tem morrer para viver na história, que nem o Chico Mendes. Eu penso que a gente tem que viver vivo”.
A reflexão é de Raimundo Oliveira, marido da líder rural jurada de morte Nilcilene Miguel de Lima, a Nilce. O casal mora no Sul do Amazonas, município de Lábrea, fronteira com a mata amazônica nativa.
Eles começaram a receber ameaças quando Nilce assumiu a presidência de associação criada pelos pequenos produtores para defender o grupo contra invasões de terra e roubo de árvores. Ao denunciar os madeireiros e grileiros, Nilce foi espancada e teve sua casa queimada em um incêndio anunciado. Em maio de 2011, teve que fugir enrolada em um lençol para despistar o pistoleiro de campana no portão. Depois de seis meses e muitos apelos da Comissão Pastoral da Terra, Nilce entrou no programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Em outubro, uma equipe da Força Nacional foi deslocada para que ela pudesse voltar para casa.
No tempo em que Nilce estava exilada, Raimundo ficou sozinho e entrou na mira dos pistoleiros. Ouviu recados, viu sua casa ser rondada e recebeu cartas de ameaça – que não pode ler pois é analfabeto. Hoje, com a chegada dos nove policiais, ele está ainda mais contrariado com a luta da mulher. Sob a sua perspectiva, não faz sentido arriscar a vida para denunciar crimes que o estado não parece interessado em punir.
Até agora, a inclusão de Nilce no programa foi a única ação do governo em resposta ao crime organizado que se fortalece na região.
Além de não ter energia, telefone, posto de saúde ou delegacia, as cerca de 800 famílias que moram na comunidade de Nilce vivem sob o controle de uma quadrilha de pistoleiros. São mais de 15 “profissionais” que vieram de Rondônia, Mato Grosso e Bolívia. Eles ficam à disposição dos grileiros e madeireiros e fazem o que for preciso para chegar ao “ouro verde”: as florestas recheadas de ipês, cedros e angelins.
Ao longo dos oito dias que passei na casa de Nilce e Raimundo, ouvi mais de 30 depoimentos de pequenos produtores e assentados sobre as violências praticadas pela quadrilha. São relatos de agressões físicas, ameaças de morte, queima de casas, roubos e revistas seguidas de saque. Tudo praticado a mando dos grileiros e madeireiros (leia os relatos sobre a quadrilha aqui).
Isso acontece em lotes individuais e dentro dos dois assentamentos demarcados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
A cada pedido de entrevista, os produtores avaliavam o risco de sofrerem retaliação da quadrilha. E faziam uma reflexão parecida com a de Raimundo: adianta colocar a vida em risco para fazer denúncia? O governo vai tomar providências?
Ainda não se viu ação do governo, da justiça ou da polícia para atacar a raiz do problema: a desarticulação da quadrilha. Apesar da escolta, os criminosos que ameaçaram Nilce seguem livres e na ativa.
Graças às denúncias, um inquérito foi aberto para investigar 23 pessoas por extração de madeira, grilagem, lesões corporais e ameaça. Eles tiveram prisão preventiva decretada, mas os mandados foram revogados e o inquérito está parado na delegacia de Lábrea (leia sobre os fazendeiros investigados aqui).
As mesmas pessoas continuam cometendo os mesmos crimes nas barbas da equipe da Força Nacional. De madrugada, caminhões carregam toras de madeira sem sequer evitar o trecho que passa a 30 metros da varanda de Nilce. Duas famílias próximas a ela foram perseguidas pelos pistoleiros em retaliação à presença da Força e tiveram que fugir.
Nilce se sente isolada. “Eles vão me matar”, ela desabafou em visita à casa do tesoureiro de sua associação – um dos que teve de fugir depois de ameaças. Sentada na escada que leva à porta da casa vazia, ela gravou um apelo para as autoridades.
Representantes do governo revelaram que eles também sofrem ameaças do crime local. Houve até um caso de agressão física contra funcionária do Incra. Mas, quando confrontado pela truculência do crime organizado, ao invés de voltar com mais força para enfrenta-la, o governo recua. Movimento que fortalece os criminosos.
Foi assim com o programa de regularização fundiária Terra Legal. Lábrea foi o primeiro município da Amazônia a receber o programa pois está no “Arco Verde” – ocupação que cerca a floresta nativa, onde avança a grilagem e extração de madeira. Mas o processo foi adiado. Devido a ameaças, a empresa contratada para o georeferenciamento não cumpriu o contrato e o governo abriu nova licitação.
Até hoje, nenhum título foi entregue. Pior: o conflito se agravou. Depois de iniciado o processo, a corrida pela terra se intensificou (leia mais aqui).
Raimundo é um dos que está esperando o título definitivo. Ele já fez o cadastrado e foi aprovado, mas não tem a prova para se defender quando procurado pelas pessoas que alegam serem donas de sua terra.
Ele também aguarda, ansioso, pelo andamento do inquérito sobre as pessoas que ameaçaram Nilce. E não entende muito bem porque as autoridades demoram tanto para agir quando tantas vidas estão em risco.
“Enquanto a Nilce estava aqui, denunciando essa situação só para as segundas pessoas, a gente achava que o governo não tomava providência porque não sabia”, ele diz. “Mas agora que ela foi para Brasília, falou com as primeiras pessoas lá no ministério, qual vai ser a desculpa?”
A íntegra das reportagens de Ana Aranha sobre Nilce podem ser lidas na Agência Pública.
Fonte: Blog do Sakamoto