“Teu salário paga a comida do meu cachorro” e outras brasileirices

“Você sabe com quem está falando?”

Foto: Flávio Florido

Por Leonardo Sakamoto no Blog do Sakamoto 

Uma amiga jornalista reclamou que uma fonte ligou para ela gritando a frase – que é uma das sentenças definidoras da sociedade brasileira.

Daí achei que era o caso de resgatar um debate que já fiz aqui. Não tanto pela arrogância e prepotência da frase, mas porque ela carrega séculos de nossa formação, lembrando que uns falam, outros obedecem.

E que, na visão de parte de nossa elite política e econômica, a igualdade de direitos é um discurso fofo que se dobra às necessidades individuais.

Não somos uma sociedade de castas. Mas cada um sabe qual o seu quadrado.

“Quem você pensa que é?” é menos agressiva e útil frente a algum desmando de um representante do Estado, por exemplo. Mas não faz tanto sucesso no Brasil como a outra.

Pois não é o questionamento do uso exagerado do poder por um policial ou um fiscal que está em jogo nesse momento de discussão, mas sim a afronta de tentar tratar um “dotô” como se fosse um operário qualquer.

A ideia vai se adaptando conforme o ambiente e pode, agregando valores, assumir outras formas:

“Teu salário paga a comida do meu cachorro” (muito querida por alguns jogadores de futebol)

“Eu conheço gente importante, sabia?” (uma das campeãs entre os guardas de trânsito)

“Você vai perder seu emprego, meu irmão” (tente ser um oficial de Justiça cumprindo seu dever para ver o que você vai ouvir)

“Isso que dá vir a um lugar que tem essa gentinha” (quando crianças criadas no leite de pera não têm seus desejos atendidos em grandes shows de música)

Cidades como o Rio de Janeiro, que têm praia, estão mais acostumadas à convivência interclasses, mas nem sempre de forma pacífica, a bem da verdade.

Isso sem contar que, por lá, temos magistrados com crise de identidade que, no trânsito, pensam que são divindades que brilham no escuro.

No Brasil, de uma maneira geral, se você quiser viver em uma bolha a vida inteira, praticamente consegue. Tenho amigos que conhecem a Europa e os Estados Unidos, mas só foram à Itaquera pela primeira vez na Copa de 2014.

Ou que nunca estudaram com um homem negro ou uma mulher negra. Acham que racismo não existe.

Essa ausência da cultura da alteridade leva ao medo e colabora com comportamentos e frases bizarras, revelando o lado mais sombrio da alma de cada um.

O que é extremamente complicado porque o Brasil é composto majoritariamente por essa “gentinha pobre que não sabe com quem está falando”.

Não se espera que os mais ricos passem a defender que os mais pobres tenham os mesmos direitos que eles (é o sistema, estúpido!), mas, pelo menos, que concordem com um mínimo para viabilizar a convivência pacífica.

Com o crescimento econômico, aumenta o número de pessoas com acesso a bens e serviços. Isso gera aquela “infestação de gente parda” e feia nos aeroportos, que estão tomando o “nosso” lugar.

A coisa boa é que esse pessoal vai ficar cada vez mais irritado. Até chegar o dia em que será comum responder “Quem você pensa que é” para quem rosnou “Você sabe com quem está falando?”.

A coisa ruim é que mesmo com muito trabalho de educação para a cidadania, concomitante a mudanças estruturais para garantir que a República realmente sirva ao interesse comum, ainda assim levará um rosário de gerações até que frases forjadas pelo preconceito e a soberba tornem-se peça de museu.

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