Romance coloca em pauta temas como racismo e violência policial

“… Quero dizer também que o professor Henrique Nunes não morreu por mera circunstância da vida, morreu porque era alvo de uma política de Estado. Uma política que persegue e mata homens negros e mulheres negras há séculos”. 

Essa frase acima resume muito bem o que é ser um corpo preto no Brasil. E não apenas aqui, claro. O racismo está enraizado no país há milhares de anos, é parte da natureza de nossa sociedade, uma nação que construiu o seu ideal de identidade negando suas origens negras e indígenas. E com isso viu na violência o modus operandi para segregar e matar pessoas não brancas. 

Falar sobre racismo não é tarefa fácil, mexe com a gente, machuca e nos faz reviver episódios de discriminação velada e não velada. Só quem já sofreu – e sofre – esse tipo de preconceito sabe a dor e as marcas que ficam, que fere a vida de uma pessoa. Como aconteceu com o professor Henrique Nunes. 

Afinal, quem é esse sujeito? E por que estamos usando-o como referência para falar e cutucar nossas feridas? Talvez, ele seja eu, você e tantos outros homens negros vítimas cotidianamente do racismo estrutural; da violência sistêmica da polícia brasileira. 

É dessa forma que o escritor Jeferson Tenório resolveu narrar a história de Pedro, filho de Henrique e Martha. Na verdade, o romance é sobre recontar a vida deles pela perspectiva e sentimentos do filho, que enterra o pai assassinado. Morto em mais uma operação policial completamente absurda e sempre tendo como alvo o corpo negro. 

O Avesso da Pele, terceiro livro publicado por Tenório, é um brilhante e contundente romance sobre buscas e compreensões do que é ser um afro-brasileiro nas grandes capitais do país. Como é viver sob olhares de desconfiança o tempo todo e marcados para morrer conforme a lógica perturbadora e brutal do racismo. Um relato em forma de literatura. 

Tendo como pano de fundo o sul do país, a cidade do Porto Alegre, o jovem vai percorrendo a vida dos pais desde o dia que se casaram até a trágica morte do professor de língua portuguesa e literatura. Nesse processo de refazer a trajetória deles, o jovem debruça-se sobre situações em que ele também foi vítima de preconceitos e sentiu na pele o desprezo por sua cor. 

A narrativa é densa, prende do começo ao fim, quase ficamos sem respirar de tanto sufoco que O Avesso da Pele causa. É um impacto a cada página lida. A ficção é sobre criar identidades, é isso também que Tenório faz questão de registrar. O processo de se reconhecer negro; passar a ter consciência racial é momento de grande emoção na obra. 

Pedro cita esse despertar na vida do pai, quando ele, Henrique, passa a enxergar como o racismo age e molda a vida dos não brancos, condicionando-os a sofrerem ações discriminatórias ao longo de suas vidas. Contudo, mostra o quão importante é esse descobrimento e como ele nos reconecta com nossas origens afros. Uma construção da identidade e pertencimento à negritude. 

É um mergulho profundo em questões centrais de nossa sociedade, uma reflexão pertinente aos conflitos raciais. Escrito para ir além do campo literário: para provocar observação sociológica mesmo e invadir nossas mentes com mensagens objetivas e denunciativas. 

Jeferson Tenório nasceu no Rio de Janeiro em 1977, e mora em Porto Alegre. O Avesso da Pele é o seu primeiro livro editado pela Companhia das Letras, editora que vem buscando inserir mais autores negros no seu catálogo. Ele já publicou o Beijo na Parede (2013) e Estela sem Deus (2018). É doutorando em Teoria Literária pela PUC – RS.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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