Amar o distante

Minha rua, aqui na Vila Madalena, não tem pedrinhas de brilhante para o meu amor passar. Ela tem casinhas e alguns cachorros nos quintais. Entre eles, o meu Chico. Ele está com quinze anos, meio cego, meio surdo, meio gordo. No mais, está tudo bem com ele, obrigada. O Chico tem outros vizinhos. Algumas vezes, durante o dia, eles conversam, do jeito que cães fazem, latindo.

Mas – repare que na vida há sempre uma conjunção adversativa – há na rua uma vizinha que odeia cachorros. Ela não suporta trinta segundos de latido. Abre a janela e solta todos os impropérios (eufemismo para palavrões) de seu vasto repertório. Decorridos mais de seis anos de vizinhança, tomei ciência de algumas informações de sua biografia.

Por exemplo, minha vizinha é educadora de um afamado e caro colégio. Desses com origem cristã, empenhados em formar a tal elite de amanhã. Penso que seus alunos ficariam boquiabertos ao ouvir o menu de ofensas verbais da professora. Agora que malfalei dela, vou contar do marido. Ele também detesta cães.

O método de ataque dele é diferente. No lugar de vitupérios, ele toca uma corneta, aguda para furar tímpanos humanos e caninos. Uma tarde, o meu Chico me perguntou se ele era general de alguma banda. Respondi que na verdade ele é psiquiatra. Isto é, a matéria-prima do trabalho do casal é gente.

 

Esses vizinhos me lembram um colega de faculdade, de quem fui muito amiga e depois nem tanto. Ele hoje é chamado para falar em mesas que tratam de direitos humanos, direitos ecológicos, direitos de manifestação etc. Um protocolo completo do politicamente correto. Reconhece diferenças, dá loas à diversidade. Mas não tolera feministas, principalmente aquelas que põem a boca no trombone.

É claro que eu sei que há muitas pessoas que ajudam o Médico sem Fronteiras, atuando na longínqua África, mas ficam histéricas com a proximidade geográfica de um Conselho Tutelar ou de uma Fundação Casa. Gente que apoia greves reivindicando reajustes salariais, mas fecha a carteira quando a empregada doméstica pede um aumento.

Confesso que não gosto dos meus vizinhos que não gostam do meu cachorro. Sonho até que um caminhão de mudança encoste e os leve para bem longe da minha rua. No entanto, de uma certa maneira, eu posso compreender como funcionam suas cabeças. Igualzinhas à maioria das cabeças. Afinal, amar a humanidade é fácil. Difícil é gostar do vizinho.

Imagem: Régine Ferrandis, de Paris

Fonte:Yahoo

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