A lição de Mário de Andrade – I, por Walnice Nogueira Galvão

Celebrações da passagem do aniversário de 70 anos da morte de Mário de Andrade multiplicam-se, e merecidamente, nem é preciso dizer. Homem dos sete instrumentos, Mário devotou-se incansavelmente à promoção das artes brasileiras, sendo ele mesmo autor de prosa de ficção, poeta, ensaísta, articulista de jornais e revistas, professor de piano no Conservatório Musical, colecionador de arte, pesquisador de campo da cultura popular, etc., etc., etc.

Por Walnice Nogueira Galvão, do GGN

Mais um dentre tantos legados que deixou, abrindo caminhos – e talvez dos menos lembrados – é o de estudar com recursos de erudito as manifestações populares.

Como se sabe, Mário criou o primeiro Departamento da Cultura de nosso país, na prefeitura de São Paulo. Hoje, estamos habituados a ter órgãos desse naipe a nível de município, secretarias da Cultura a nível estadual, e mesmo um Ministério da Cultura a nível federal. Pois bem, tudo deriva daquele pioneiro, e nem pensamos mais nisso.

Criou parques infantis, orquestra sinfônica, quarteto de câmara, departamento de bibliotecas  – e muito justamente a biblioteca municipal da cidade, que ele não chegou a ver, hoje leva seu nome. Apesar de ser “do município” de São Paulo, Mário, entre outras coisas, organizou e enviou ao Norte e Nordeste a Missão de Pesquisas Folclóricas. Foi a primeira do gênero entre nós e recebeu treinamento em etnografia de campo dado por Dina Lévi-Strauss. O departamento financiaria ela própria e seu marido Claude em viagens de terreno a aldeias indígenas.

A Missão carregou literalmente toneladas de equipamento, pois corriam os anos 30 e a era digital ainda não tinha chegado. Gravou discos e fotografou cantorias, folguedos e danças, anotando manualmente as partituras em cadernos pautados e recolhendo objetos característicos. Os pesquisadores viajavam de navio, de caminhão, a cavalo e a pé. Ao todo, trouxeram de volta 10 mil peças.

O imenso acervo, hoje sob a guarda do Centro Cultural Vergueiro,  levou 70 anos para ser indexado e catalogado. A esta altura, já está digitalizado e remasterizado, além de restaurado. Há poucos anos, a musicóloga Flávia Toni, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, encarregou-se da tarefa, que resultou num catálogo, gravação de vários CDs e uma exposição.

Pequena parte desse material foi aproveitada pelo próprio Mário nos três volumes das Danças dramáticas do Brasil e em Os cocos. Da publicação desses livros, deixados incompletos por Mário quando de sua morte precoce, cuidou Oneyda Alvarenga, seu braço direito, em dedicação de muitos anos. Mas ainda sobrou a maior parte, intocada. O acervo pode ser visitado no Centro Cultural Vergueiro, e vale a pena.

É no Instituto de Estudo Brasileiros da USP que está depositado o Fundo Mário de Andrade, com seus pertences,  biblioteca, móveis, coleção de pintura/escultura/gravura, coleção  de arte popular, correspondência ativa e passiva, e até a máquina de escrever, que ele apelidou de Manuela. O IEB, em suas muitas décadas de funcionamento, veio a se tornar o maior centro de especialistas em Mário de Andrade, oferecendo cursos, formando discípulos, despertando vocações, orientando teses, tornando o acervo algo vivo e vital, o que pode ser verificado na enorme produção que dali saiu.

O interesse de Mário pelas manifestações populares envolvendo música era sem limites. Muito trabalhou gravando, anotando e fazendo desenhos para registrar a coreografia de coisas como reisados, congadas, moçambiques, etc. Seu entusiasmo por um cantador extraordinário que conheceu em suas viagens pelo Nordeste, Chico Antonio, expressou-se em artigos publicados em jornal e em muito material inédito que deixou e está preservado no acervo do IEB. Juntando tudo, deu um livro, em cuidadíssima edição crítica preparada por Raimunda de Brito Batista, Vida do cantador.

Muitos anos depois, Eduardo Escorel voltou à região e conseguiu encontrar Chico Antonio ainda vivo. Realizou com o cantador um maravilhoso filme documentário, que intitulou  Chico Antonio, um heroi com caráter – num jogo de palavras com Macunaíma, um heroi sem nenhum caráter.

+ sobre o tema

Lázaro Ramos: ‘Os não negros precisam entender o lugar de escuta’

Aos 38 anos, Lázaro Ramos é referência para jovens...

Quilombolas reivindicam direito à terra; Aracruz Celulose contesta

Fonte: Repórter Brasil - Irohin - Moradores de Sapê...

Ludmilla revela título e data de lançamento do quinto álbum de estúdio

♪ Vilã é o título do oitavo álbum da discografia de Ludmilla,...

para lembrar

GEA investirá mais de R$ 900 mil na Semana da Consciência Negra

Ocorreu na manhã desta sexta-feira, 4, a reunião da...

Release da Exposição

Em homenagem ao centenário do Dia Internacional da Mulher,...

James Baldwin, o grande crítico do sonho americano

“Quando você estava começando como escritor, sendo negro, pobre...
spot_imgspot_img

Mulheres sambistas lançam livro-disco infantil com protagonista negra

Uma menina de 4 anos, chamada de Flor de Maria, que vive aventuras mágicas embaixo da mesa da roda de samba, e descobre um...

Podcast brasileiro apresenta rap da capital da Guiné Equatorial, local que enfrenta 45 anos de ditadura

Imagina fazer rap de crítica social em uma ditadura, em que o mesmo presidente governa há 45 anos? Esse mesmo presidente censura e repreende...

Clara Moneke: ‘Enquanto mulher negra, a gente está o tempo todo querendo se provar’

Há um ano, Clara Moneke ainda estava se acostumando a ser reconhecida nas ruas, após sua estreia em novelas como a espevitada Kate de "Vai na...
-+=