A fatura

Parece haver consenso de que o tempo da cobrança chegou. O preço elevado da fatura aquece a troca de acusações. Ninguém se dispõe a assumir a responsabilidade pelo acúmulo da dívida. De um lado, o espetáculo degradante da sombra de uma esquerda que se dissipou. A manutenção no poder passou a se impor na ordem do dia, a lógica da propina e do desvio se instalou no pragmatismo da governança possível e vemos o resultado indisfarçável em números constrangedores jorrando de poços de petróleo e negociatas espúrias.

Por Ana Flauzina, do Brado Negro 

De outro, temos um filme tipo B promovendo ganância disfarçada de moralidade. A agenda requentada dessa direita, que faz o estômago embrulhar, está em alta. Mantenedores das estruturas corruptas bradando sem constrangimento a necessidade de investigações seletivas, delações que os poupem dos esquemas e o apagamento da memória de que esse sistema corroído é herança de tempos em que seus pares habitavam o poder central.

Diante do cenário limite, as tensões escalam. A crise econômica encurta os horizontes do consumo e expõe o fato de que os avanços das políticas sociais nunca foram capazes de abalar as estruturas dos privilégios. Na hora de apertar o cinto, é o trocado conquistado a árduas penas pelos que estão à margem o primeiro a sumir de circulação.

Mas a crise não é analisada de suas entranhas, passando a ser exposta como a corrosão da estabilidade financeira e da escalada da violência contra a classe média que se ressente: por ter de reduzir o número de vistos nos passaportes, passar da escrava constante à diarista eventual, olhar à espreita pelo carro a espera do próximo sequestro relâmpago. Desse ângulo estreito, os sons de panelaços em bairros abastados e passeatas com público vip passam a ser a imagem da resistência popular à bandalheira institucional.

Enquanto isso, a vida segue seu curso para os que tem o terror de Estado como resposta patente desde os tempos das caravelas. Com um Executivo de joelhos e um Judiciário duvidoso, o Legislativo vira o eco para a resposta derradeira: a conta vai mais uma vez ser quitada no lombo da negrada. Enquanto se arranjam os termos das negociações por cargos, para se comprar os silêncios, a agenda do extermínio vai avançando sem constrangimentos.

A Juventude negra, pintada como algoz, garante o imaginário da segurança fraudulenta que se propaga. A discussão dos autos de resistência, esse salvo- conduto policial para as execuções sumárias de cada dia, é afastada pelo apetite guloso da redução da maioridade penal. A prescrição é simples: prender no atacado e matar no varejo. As ruas recebem o recado e passam à ação: a temporada dos linchamentos está aberta. O homem negro amarrado no poste dá o recado final de que o boleto será enfim liquidado.

A decadência do Brasil é desenhada como a necessidade de se substituir as elites brancas governantes e de se moer a carne negra para o reestabelecimento da ordem. Nessa dinâmica pervertida, a crise cobra a fatura dos envolvidos no processo dentro dos parâmetros morais e políticos mediados pelo racismo.

Na polarização radical das elites, o jogo passa pela perda de espaços de poder, constrangimentos públicos e processos arrastados por anos com o horizonte da prisão simbólica de alguns. No quotidiano negro, os centavos são cobrados pela luta pela subsistência que se esvai com os empregos, pela perda das perspectivas da educação que se interrompe, pelos julgamentos sumários que aceitam a vida como moeda barata nas transações parlamentares e no imaginário genocida que se aprofunda sem censura nos lares de bem.

ANA_LUIZA_FLAUZINA
Ana Flauzina é doutora em Direito e pesquisadora associada do Departamento de Estudos Africanos e da Diáspora Africana da Universidade do Texas em Austin (Estados Unidos)

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