A sombra de seu sorriso, por Sueli Carneiro

Era final da década de 70 e durou por toda a década de 80. Vivíamos o auge da efervescência das teses e dos grandes programas de planejamento urbano e engenharia de tráfego. Emergiam grandes técnicos, grandes planejadores urbanos que pareciam, capazes de tomar uma cidade como São Paulo viável em termos de qualidade de vida, de uso do solo e de organização do tráfego.

Por Sueli Carneiro

Arquitetos, engenheiros, cientistas sociais, gente de todas as colaborações políticas e ideológicas empenhava -se no desafio de planejar a maior cidade da América Latina . As disputas teóricas e práticas em especial, entre arquitetos e engenheiros, e as diferentes visões que os orientavam em relação à concepção e ao futuro da cidade tinham em comum apenas um nome, presente em todas as bibliografias dos planos e projetos urbanos : Milton Santos. Uma unanimidade, referência obrigatória para todos os que se dispunham a pensar e a agir sobre aquele território .

Trabalhei durante dez anos na área de planejamento e acostumei-me também, sem conhecê-lo pessoalmente, a citar recorrentemente o mago dos “planejeiros” como todos os outros. Certo dia, minha irmã, então secretária de departamento na Coordenadoria Geral de Planejamento do Município de São Paulo (COGEP), recebe a ligação de um homem de fala mansa e educada . Era Milton Santos solicitando uma reunião com o seu coordenador . Consciente de fama e da importância de quem estava do outro lado da linha, ela prontamente o atende e reserva o horário.

Dias depois, entra em sua sala um senhor muito preto de voz mansa e educada. Ela lhe pergunta o que deseja. Ele diz que tem hora marcada com o coordenador . Ela consulta a agenda e pergunta o seu nome . Ele diz : Milton Santos. Como “amarelar” ela não podia, simplesmente “acinzentou” e, toda nervosa, oferece – lhe água e café e a melhor poltrona da recepção . Pede licença e corre para avisar o chefe . Este imediatamente vem recebê – lo com toda a pompa . Ele, como sempre, sorrindo docemente com profunda compreensão e serenidade do espanto dela e das mesuras de seu chefe.

Fecha – se a porta atrás de ambos e ela, afoita, me liga . Eufórica e orgulhosa diz: “Sueli, ele é preto ! “É verdade . Durante anos, ouvindo falar dele nunca soubemos que era preto. Se alguém nos disse, não creio que estávamos prontas para ouvir e realizar em nossas mentes, à época, ainda condicionadas pelo racismo, que um negro era grande referência teórica de todos aqueles brancos. Talvez de fato tenha também havido muitos silêncios em relação à sua cor, pois para alguns referir – se a ela poderia parecer rebaixá-lo à moda de um grande poeta brasileiro, frente a Machado de Assis, que no esforço de enaltecê-lo grafou: “Machado de Assis não é negro, é um grego. ”

 

Transitava, consciente dos contorcionismos que provocava, pela incorrespondência entre os estigmas que aprisionam o corpo negro e sua condição de scholar, ícone de excelência acadêmica, supostamente um atributo de corpos e mentes brancos . Tive a oportunidade de contar a ele essa historieta idiota sobre a minha descoberta de sua cor . Ele, com a complacência que só os sábios têm diante dos néscios, sorriu uma vez mais mansamente …

Foi e é muito respeitado. Mais pela impossibilidade de subtrair -lhe o reconhecimento à sua extraordinária produção . Mas pagou o preço pela inteligência rara, pela originalidade de seu pensamento e independência intelectual no sentido mais pleno da palavra; um produtor de conhecimento de alta excelência, numa terra em que preto deveria contentar -se em ser apenas objeto de estudo .

Por isso as principais homenagens que recebeu por sua contribuição ao pensamento mundial lhe foram feitas fora do país, em contraste com a bajulação constante de que gozam muitos intelectuais de menor porte ou sem o seu prestígio e importância internacional . Mas isso também evidencia um tipo de autonomia e de rigor acadêmico e intelectual que, ao não comportar o elogio fácil e servil a si mesmo e aos outros, o situou sempre na direção oposta desse senso comum.

A serenidade permanente, o sorriso manso e a fala educada contrastavam com a radicalidade das idéias e posições . Radicalidade entendida como o “tomar as coisas pela raiz” e não se permitir concessões teóricas que conspurcassem princípios científicos e éticos . Igualmente, nenhuma condescendência ou confinamento a uma negritude redutora da expressão de sua inteireza humana como prefeririam muitos.

Nas poucas vezes em que tive o privilégio de encontrá -lo e ouvi-lo sobre a questão racial, havia um não -dito no qual reverberava para mim a célebre frase do poeta nigeriano Soyinka :”O tigre não lardeia a sua tigretude, ele simplesmente ataca”. Negritude, no seu caso, não carecia de afirmação, era pura expressão de racionalidade e sensibilidade humanas em sua acepção maior, construídas possivelmente graças à “permanente vigília” que, conforme ele enfatizava, “o fato de ser negro o conduzia”. Negritude concebida e manejada com um instrumento de refinamento e de percepção, apropriação e projeção do território e do humano em toda a sua complexidade.

Senhor dos espaços, confiante, dizia: “Há dois abrigos para o homem, um é a Terra; o outro, o infinito”.

+ sobre o tema

Regras internacionais de direitos humanos garantem prisão domiciliar a gestante

Além da legislação brasileira, o ministro Lewandowski buscou fundamento...

Preso por ameaçar mulher com arma de fogo, Chris Brown paga fiança de US$ 250 mil e é solto

Chris Brown foi preso nesta terça-feira (30), após ameaçar...

DF é a capital que mais registrou agressões contra mulheres em 2019

O Distrito Federal foi a capital que mais registrou...

Feministas protestam em frente tribunal de Nova York contra Dominique Strauss-Kahn

Cartazes carregam a frase 'Nafissatou, acreditamos em você'   Vinte e...

para lembrar

Graça Machel anuncia fim do luto por Mandela

A organização não-governamental Graça Machel Trust, com sede na...

Em São Paulo, a Marcha das Mulheres Negras avança

Focado na luta contra o racismo, o machismo e...

O homem negro gay

O corpo negro é constantemente objetificado e personagem do...

Mulheres negras – construtoras do passado, presente e futuro!

As lutas pela vida, contra o racismo, o sexismo...
spot_imgspot_img

Sueli Carneiro analisa as raízes do racismo estrutural em aula aberta na FEA-USP

Na tarde da última quarta-feira (18), a Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP) foi palco de uma...

O combate ao racismo e o papel das mulheres negras

No dia 21 de março de 1960, cerca de 20 mil pessoas negras se encontraram no bairro de Sharpeville, em Joanesburgo, África do Sul,...

Ativistas do mundo participam do Lançamento do Comitê Global da Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver

As mulheres negras do Brasil estão se organizando e fortalecendo alianças internacionais para a realização da Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem...
-+=