Crônica do jornalista Galeno Amorim sobre Geraldo Garcia, vítima de racismo…

*Geraldo, um brasileiro*

*Galeno Amorim*

Ele nasceu Geraldo. Mas, por anos a fio, só o chamavam pelo apelido:

– Ô, Lai!

Era Lai pra cá e Lai pra lá. Um apelido besta que não dizia nada, e que a mãe só conseguiria por fim quando ele já era quase um adulto.

Lai cresceu como toda criança pobre de São Gotardo, interior de Minas.  Entre folguedos e brinquedos feitos com as próprias mãos, o menino esguio vivia correndo atrás de uma bola. Não tardou a torcer pro Atlético e vibrar com os gols desconcertantes do Dadá Maravilha. Tomou gosto ainda pequeno por bater uma bolinha na várzea. Gostava era de jogar no ataque e enfiar uns golzinhos.

– Caiu na área é pênalti… e eu mando pra rede! – era seu lema.

Mas quando chegou a hora de ir pra escola, Lai não foi. Precisava era de ajudar a mãe, que, abandonada pelo marido, criou sozinha ele e os dois irmãos. O moleque aprendeu cedo a lidar com o gado, tirar leite da vaca. Guarda até hoje nas costas, como um troféu, as marcas de chifrada de boi. E os calos nas mãos que vieram com os balaios de milho que levava sobre os ombros.

Definitivamente, não era uma vida mole.

Lai tinha um sonho: queria era ser cantor de música romântica. Como aquelas do ídolo Roberto Carlos. Ou de sertanejos, que ele também gosta muito. Ele tem uma voz bonita e chegou a fazer ponta em shows populares na periferia.

Mas acabou mesmo indo trabalhar como boia-fria e /chapa/. Foi jardineiro, fez todo tipo de serviço braçal. Mais tarde arrumaria o emprego de faxineiro, primeiro num shopping center; depois, na faculdade, onde está até hoje.

A escola mesmo só entraria na vida dele aos 15 anos. Foi fazer o antigo Mobral e ficou por lá até a 6ª série. Lai até que queria, mas não houve como seguir adiante. Dava duro de sol a sol durante o dia. À noite, com a barriga vazia, despencava de sono sobre os cadernos.

A vida seguiu adiante. O moço arrumou namorada e acabou se engraçando com ela. Os filhos vieram logo e pra cada um deles arrumou um nome que começasse com a letra “d”. Uma foi Delma; a outra, Débora. Os meninos se chamaram Denis e Delson.

Um belo dia (e agora de novo Geraldo) tomou coragem e um ônibus. Partiu de Uberlândia, onde fora morar com a família, no rumo de São Paulo. Seguia em busca de uma vida melhor e de um lugar ao sol. Já ouvira dizer sobre uma tal Califórnia Brasileira.

Desembarcou, sem eira nem beira, na rodoviária de Ribeirão Preto. Sem saber ao certo pra onde ir, andou a esmo pelas ruelas da Vila Tibério. Ali, ele teria ali uma bela mostra da solidariedade humana na sua nova cidade. Uma catadora de papel, que acabara de conhecer na rua, deu abrigo a ele e a sua prole. Sim, seria naquele lugar, ele pensou, que reconstruiria, tijolo por tijolo, uma vida nova. Aos poucos, foi se percebendo um cidadão e aquela, a sua cidade.

Seu Geraldo Garcia é um sujeito pacato, desses com uma vida simples, comum, igual à de tanta gente. Não bebe, vai à igreja toda semana. Não mexe com ninguém. Gosta, sim, é de prosear com os amigos. E de sossego. Vive com a mulher e o neto, Gustavo, um menino esperto de seis anos que frequenta a escola pública. Cinquenta e cinco anos bem vividos nas costas, ele é o típico cidadão boa-praça: trabalhador, respeitoso e crente em Deus.

A casa pequena em que mora de aluguel fica nos Campos Elíseos. Não é longe do Centro e dá pra ir de bicicleta pro trabalho. Ele gosta da vida que tem. Se pudesse voltar no tempo, só faria uma coisa diferente: terminaria os estudos. Não que queira ser doutor:

– Só queria saber mais. Pra poder me expressar melhor…

Seu Geraldo é só um brasileiro. Que chora e ri. Que sente saudades, paga impostos, tem sonhos. Uma vida simples assim. E, por isso mesmo, bela e admirável. A boniteza está justamente na sua simplicidade.

PS. Duas semanas antes do Natal, a vida de Seu Geraldo mudou. Enquanto ia para o trabalho, às seis horas da manhã de sábado, ele foi atacado pelas costas por três estudantes de Medicina, que voltavam da balada. Um deles enrolou o tapete do carro e, ao ultrapassá-lo, bateu forte em suas costas. Geraldo se desequilibrou da bicicleta e foi ao solo. Os três rapazes de classe média comemoraram o feito, gritando: “Ô, negro!”. E fugiram. Deixando pra trás um grito de dor e inconformismo. Mas também, entre os que lá o encontraram, uma vontade danada de fazer justiça e respeito; e sinais incontestes de solidariedade. Além de um clamor por mudanças e por um ano verdadeiramente novo – sobretudo, de valores novos.

 

Texo relacionado:

Estudantes de medicina são presos por racismo em RP

 

*/Galeno Amorim é jornalista e escritor./*

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