Por: Leonardo Sakamoto
Com as chuvas que estão levando a vida de centenas de pessoas e lavando a incompetência de nossos governantes, alguns assuntos não tiveram o destaque que deveriam. Um deles é a operação montada contra o transporte coletivo na cidade de São Paulo. Sim, porque se não foi coisa orquestrada para dificultar a vida de quem não tem ou não quer usar carro, isso é claramente um indício de má fé e de incapacidade de entender o interesse público. Como sei que nossos administradores, de hoje e de ontem, são pessoas da mais alta competência e dedicação à res publica, boto fé na opção do conluio…
A tarifa de ônibus saltou de R$ 2,70 para R$ 3,00 no dia 05 de janeiro – 11% de reajuste quando a inflação, em 2010, em São Paulo, foi de 5,83%, de acordo com a Fipe. O metrô, que oferece um serviço nitidamente superior aos seus usuários, custa menos. E não estou nem falando dos atrasos, da superlotação, do desconforto ou de quão obsoletos são os coletivos. Vamos para algo mais básico: baratas. Isso, baratas, como aquelas que os usuários dos ônibus da Zona Leste são obrigados a matar roteineiramente, conforme matéria da Folha de S. Paulo publicada no mês passado.
Aí, quando a população resolve sair da toca e protestar, como nesta semana que passou, o que acontece? Balas de borracha nos estudantes (que é para aprenderem, desde cedo, quem manda e quem obedece), gás de pimenta (lembrando que o Estado usou o mesmo expediente, no ano passado, em um protesto de moradores do Jardim Pantanal que haviam perdido tudo o que tinham, tragados pela merda nas enchentes) e outros apetrechos usados pela nossa democracia para fazer valer a cidadania. Entre as centenas de manifestantes, houve feridos, presos, enfim, o caos. Poucas horas depois, ouvi da boca de um proprietário de um carrão novo o seguinte comentário: “Tem que botar esses vagabundos para trabalhar. O que eles querem? Que a cidade custeie o transporte deles para a balada?”
Ai, ai, nessas horas é contar até dez e responder com educação, repassando para o sujeito este ótimo vídeo do genial Marcelo Adnet.
Sim, a cidade tem que manter uma política de subsídios para o transporte coletivo a fim de estimular seu uso em detrimento ao transporte individual. Se não garantirmos opções boas e acessíveis, não conseguiremos desarmar essa que é uma das piores bombas-relógio da maior cidade do país.
E não é só evitar que o preço da passagem suba, e sim garantir qualidade e conforto para trazer o público que não é usuário de transporte coletivo para ele (aos poucos, é claro, porque não tenho tanta esperança no senso de coletividade da classe média paulistana assim). Enquanto isso, encarecer o transporte individual a ponto de ser um mau negócio usar carro a todo o momento, destinando os recursos dessas taxas e afins à ampliação da rede pública.
Com esse reajuste do dia 05, combinado com o do preço dos táxis (+18%), seguimos na toada de incentivar o transporte motorizado individual (porque novas ciclovias que é bom, neca, só de final de semana para as famílias passearem). Nunca na história dessa país se produziu e se comprou tantos carros. Ótimo para quem está tendo acesso a bens de consumo pela primeira vez e para parte da economia, mas se não avaliarmos os impactos dessas ações, estaremos cavando nossa própria cova.
Durante a crise econômica global, quando se aventou contrapartidas trabalhistas, sociais e ambientais às montadoras de automóveis que receberam benefícios de bilhões, chiaram as velhas e boas carpideiras do mercado, dando entrevistas às rádios pelo viva-voz de seus SUVs, bradando que o papel do Estado não é impor condições e criar entraves ao progresso. Por que, afinal de contas, todos nós sabemos que o papel do Estado é dar tiro em estudante para proteger a integridade do status quo.
E o pobre do metrô, que segue com grandes inaugurações apenas em anos pares (quem advinhar o porquê ganha um bilhete múltiplo de 17).
Em se tratando desse transporte, temos que ficar com dois pés atrás. Ou com os dois olhos no chão. Por aqui, cidadãos comuns e trabalhadores morrem em acidentes ocorridos em obras sob responsabilidade de empreiteiras contratadas pelo governo, como foi o caso da linha 4, em que o chão se abriu e engoliu quem estava perto. Em Salvador, a construção do metrô de tão lenta virou piada padrão entre taxistas. Em Brasília, as obras passaram anos atoladas na lama de denúncias.
E o governo federal continua acreditando que o povo precisa é de trem-bala…
Fui guardando ao longo do tempo aqueles folhetinhos do metrô com a malha existente e a projetada. No mundo da fantasia, a população, que passa perrengue com o transporte público, tem uma malha fantástica à disposição. Será que se juntar todos esses folhetinhos, posso processar o Estado por propaganda enganosa ou organizar um protesto?
Melhor não. Do jeito em que andam as coisas, vai que eu levo borrachada da polícia militar.
Fonte: BlogdoSakamoto