Enem ignora história recente e traz negros como povo que ficou no passado

Enviado por / FonteUOL, por Fernanda Oliveira*

Em Minas Gerais, no ano de 1896, uma mulher livre identificada apenas como Belmira foi levada à Justiça por manter em sua companhia o filho, Quirino, de 11 anos. Auxiliar direta da Princesa Isabel quando ela foi regente em 1887, Maria Amanda Paranaguá Dória (1849-1931) investiu em projetos de alfabetização para crianças pobres no Rio de Janeiro. Enquanto uma personagem teve sua cidadania cerceada, a outra foi esquecida.

A história do Brasil tem apreço pela oposição entre personagens e fatos, mas há outro elemento caro à análise histórica frequentemente esquecido. É a simultaneidade, que analisa as experiências simultâneas que atravessam trajetórias pessoais, acontecimentos e episódios. No último final de semana, 2,3 milhões de estudantes prestaram o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e, apesar de não perceberem, deram de cara com a simultaneidade. Ou melhor: com a ausência dela. Quer ver?

Lidar com o apagamento é uma marca da população brasileira. Não à toa, isto foi o tema da redação da prova. “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil” é um convite a pensarmos tanto sobre a nossa história quanto sobre a sua escrita. Exemplo disso aconteceu um dia antes da prova.

A celebração do 20 de novembro como Dia da Consciência Negra completou 50 anos. Neste intervalo, que em termos históricos é de fato ainda bem restrito, houve uma virada histórica.

Em 1971, a demanda era rescentralizar homens e mulheres negras na história do Brasil enquanto sujeitos, ou seja, protagonistas de suas próprias vidas. Em 2021, a Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros ocupou os principais veículos de imprensa do país com as histórias sustentadas em pesquisas acadêmicas sobre as experiências de integrantes da população negra não apenas em tempos de escravidão, mas também em tempos de liberdade. Os fragmentos que dão início a esse texto fazem parte dessa iniciativa coletiva.

O registro de fatos e personagens, a visibilização de trajetórias e a garantia de acesso a direitos, como o de criar filhos, compõem uma tríade inseparável. A crônica dos fatos é condição para jogar luzes sobre personagens históricos, que, só assim, conseguem acessar a cidadania no Brasil

O tema da redação do Enem ecoa um assunto que tem fundamento dentro da ciência histórica, mais especificamente no campo de estudos do pós-abolição no Brasil. Além de renovar a historiografia brasileira do século 21, essa nova área concentra pesquisas que compreendem as cinco regiões do país e demonstram como a população negra foi devidamente marcada após a abolição da escravidão em 13 de maio de 1888.

O “povo marcado” da canção de Zé Ramalho (1979) certamente viveu uma vida de gado, mas não assistiu “bestializado” à proclamação da República. O termo, como proposto pelo historiador José Murilo de Carvalho foi evocado na prova do Enem e é constantemente ecoado por nossa historiografia tradicional. Muito pelo contrário. Este povo depositou esperanças na república brasileira, mas se viu desprovido de cidadania, inclusive quando tentou acessar os mecanismos legais de registro, como certidões de nascimento, casamento ou formas gerais de identificação.

A exclusão desse povo vem sendo demonstrada em pesquisas sistemáticas, como aquelas realizadas sobre o sudeste cafeeiro e o Planalto Central gaúcho entre o fim do século 19 e as primeiras décadas do século 20. É aí que entra a simultaneidade. Ao não assistir bestializado, o “povo marcado” precisou efetivar sua cidadania com as próprias mãos. As pesquisas sobre assuntos dessa natureza enfatizam a centralidade das conexões e relações por meio do associativismo, de laços familiares, da educação formal e informal, dos mundos do trabalho e do ambiente acadêmico, que extrapolam os limites do Estado-nação. E tudo isso junto. Simultâneo. Não contraditório ou sequer em oposição.

Neste ano, o ENEM ainda está no centro de uma polêmica. Estudantes que prestaram a prova tiveram de conviver com denúncias dos funcionários do INEP, órgão responsável pela prova, de que houve interferência do governo federal. O assunto ainda carece de investigação, mas um detalhe ficou visível.

A escritora Lélia Gonzalez, uma das principais intelectuais do feminismo negro no Brasil (Acervo do fotógrafo Januário Garcia)

Das quinze questões dedicadas à história, nenhuma foi destinada à história recente. Ou seja, aos últimos 50 anos. O mais “recente” que tivemos foram duas questões sobre os governos Vargas. No entanto, tivemos três questões sobre escravidão. A intelectual negra Lélia González classifica como “neurose” a forma como o racismo opera na sociedade brasileira e na insistência em localizá-lo apenas no passado.

O “povo marcado” continua tendo um lugar reservado, e esse lugar permanece sendo o passado. Nem mesmo o lançamento de “Marighella”, um filme com grande repercussão nacional sobre história da ditadura militar a partir de um protagonista negro, o líder da Ação Libertadora Nacional, Carlos Marighella, foi capaz de trazer a questão para o exame.

Cartaz do filme “Marighella”, dirigido por Wagner Moura
Imagem: Divulgação

A neurose fica por conta da nossa incapacidade enquanto povo de tecer pontes sólidas entre presente e passado. É possível que a maior parte do povo brasileiro saiba quem é o “povo marcado”, saiba que ainda opera insistentemente uma falsa ideia de raça que hierarquiza pessoas socialmente e que atualiza o racismo a partir de valores de hoje e não como mera herança da escravidão.

Para quem não sabe, basta abrir as páginas dos veículos de imprensa para ver as denúncias de abordagens policiais excessivas, assistir aos vídeos de espancamentos, como aquele que levou à morte de João Alberto Freitas às vésperas do dia da Consciência Negra em Porto Alegre, em 2020, os relatos de pessoas negras, das crianças nas escolas aos idosos sem situação de vulnerabilidade E para quem quer e consegue ir além há as denúncias de racismo contra os povos indígenas, “povo marcado” por excelência nessa terra.

Dentre aqueles que têm noção de quem é o povo marcado, muitos sabem que temos muito o que avançar se quisermos de fato visibilizar nossa história a partir do presente enfrentando as neuroses mais profundas. Neste momento, quem sabe, consolidaremos a cidadania para todas e todos, independente da insistência em uma leitura da história que preza pela dicotomia ao invés da simultaneidade, que melhor capta a complexidade dos processos históricos.

*Fernanda Oliveira é integrante da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros

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