Hoje estudante, ex-detento coordena grupo entre universitários e presos

Condenado por tráfico de drogas e associação criminosa, Emerson Ferreira, 27, começou a participar na prisão do GDUCC (Grupo de Diálogo Universidade-Cárcere-Comunidade), fundado por professores de direito da USP.

por Andre Balbo na Folha

Em encontros semanais, presos e universitários debatem a questão carcerária. Hoje, no quarto ano de psicologia na Universidade Guarulhos, Ferreira coordena o grupo.

Nunca tive regalias. Meus pais trabalhavam como cozinheiros em um restaurante. Eu tinha muitos sonhos, mas, para alguém na minha condição, eles eram quase impossíveis. A ambição me fez escolher o caminho mais rápido: entrei para o tráfico.

Fui preso no dia 28 de março de 2008. Peguei cinco anos por tráfico de drogas e três por associação criminosa.

Devo minha reintegração a dois aliados: a leitura e o GDUCC (Grupo de Diálogo Universidade-Cárcere-Comunidade). Essas atividades me ajudaram a refletir sobre meus atos, sobre o cárcere e sobre meu futuro. Aprendi a não olhar apenas para a dificuldade. Li principalmente livros de psicologia e de psicanálise.

Meu maior sonho era entrar na universidade. Em um dia de visita, que coincidiu com o Dia dos Pais, meu pai foi me ver dentro da unidade. Estávamos andando pela quadra, quando eu disse: “Sei que decepcionei o senhor, mas serei o primeiro da família a entrar na universidade”.

Como detento, participei três vezes do GDUCC. Conheci o professor Alvino Augusto de Sá, que se tornou meu maior mentor.

Estávamos acostumados à rotina pesada do cárcere, e os encontros nos ajudavam a fugir disso. Parecia um encontro de amigos. Os universitários nunca nos olharam com preconceito.

Os encontros me ajudaram a me reencontrar e a me empoderar. O diálogo estimula a reflexão e faz vislumbrar o progresso. Sem isso, não
há mudança.

Se fosse depender da prisão, estaria ainda mais condenado. O cárcere nos faz esquecer quem somos. A Lei de Execuções Penais diz que o objetivo final da pena é a reintegração. Mas não é assim que as coisas funcionam na prática. O verdadeiro objetivo do sistema prisional brasileiro é a amortização do eu.

Certa vez, perguntei ao professor se algum ex-detento já havia feito parte do GDUCC. Ele disse que não. Então, falei: “Pode escrever: serei o primeiro”. Guardei isso como uma promessa e um objetivo.

Quando saí da prisão, em condicional, em maio de 2012, fui logo buscar minha primeira meta: a universidade. Foram meses de preparo e, em agosto do mesmo ano, já estava cursando a faculdade de psicologia.

No começo de 2013, fui cumprir minha promessa para o professor: fazer parte do GDUCC como universitário. Precisei de autorização judicial para voltar para dentro da unidade em que cumpri pena.

Meu retorno foi marcante: teve abraço e até choro. Meus antigos companheiros me viram como um exemplo. Foi aí que percebi que tinha uma grande responsabilidade.

Em 2014, fui convidado para ser um dos coordenadores do GDUCC.

Hoje estou ajudando a equipe a expandir o grupo. Estamos levando a iniciativa para outros Estados. Com isso, esperamos mostrar para todo o país que o melhor remédio não é a opressão
do cárcere, mas a possibilidade de diálogo.

No Brasil, prende-se muito, mas nada se ensina nas unidades prisionais, tanto que os índices de reincidência são altíssimos [70% em 2009, segundo o Conselho Nacional de Justiça]. Para piorar, vemos um movimento pela redução da maioridade penal. O sistema prisional está falido e, mesmo assim, queremos prender mais milhares de jovens? E o pior: queremos segregá-los num ambiente que leva a cometer novos crimes?

A redução da maioridade penal é como apagar o fogo com gasolina. Não tem como resolver o problema atuando no efeito –isso é alimentar o problema. Precisamos investir em educação básica e reestruturar o sistema prisional.

Continuarei trabalhando pela humanização do cárcere. Tenho um caminho longo pela frente –a batalha não chegou ao fim.

ANDRÉ BALBO fez o 3º Programa de Treinamento em Jornalismo de Ciência e Saúde da Folha, patrocinado pela Pfizer.

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