‘Investir em potencial de liderança negra é fortalecer gerações seguintes’

“Eu vejo a minha própria trajetória nas histórias das pessoas negras e das mulheres com as quais trabalho nos programas de apoio financeiro e de formação da Fundação Tide Setubal. Hoje, como coordenadora da área de raça e gênero, carrego a vivência de ser mulher, negra, nascida na zona leste paulistana. Sou fruto de uma relação interracial de pais que não tiveram chance de estudar para além do básico, e conheço bem as dificuldades, as barreiras que a nossa sociedade ainda impõe para a população preta, principalmente a feminina.

Neste agosto, mês da Filantropia Negra, faço uma retrospectiva do quanto precisei investir em construir redes de apoio para preencher lacunas na minha formação e chegar até aqui. Um descompasso histórico que separa nossa população pela cor da pele, um caminho tão desigual que percorremos desde o começo da vida.

Minha mãe é uma mulher branca, e meu pai, um homem negro. Tenho duas irmãs mais velhas e brancas por parte de mãe e um irmão negro por parte de pai. Minha mãe é evangélica, e meu pai era de religião de matriz africana. A diversidade sempre fez parte da minha vida, estava na minha casa. Mas também tinha muitas dores, porque o racismo se fazia presente em todas as relações e vitimou meu pai, que foi assassinado por um segurança de banco.

Sou psicóloga formada pela Unicsul, em São Miguel Paulista, bairro onde moro. Concluí a graduação antes da lei das cotas, precisei da ajuda da minha mãe para arcar com as mensalidades. O salário que eu recebia trabalhando com meu pai num restaurante e, depois, como secretária em um órgão público de educação, não era o suficiente. Comecei a trabalhar como psicóloga recém-formada em um projeto da Fundação Tide Setubal dirigido a jovens que discutia temas transversais ligados a drogas, sexualidade e famílias. Foi uma experiência de troca, eu tive que estudar muito para, só então, poder ensinar. Eu estava sendo formada ao mesmo tempo. Acompanhava os jovens em atividades culturais e me deslumbrava com a possibilidade de conhecer, pela primeira vez, lugares como a Avenida Paulista.

Desde então, tem sido um processo longo que foi me constituindo nas temáticas raciais. Eu tinha noção do racismo pelo que eu vivia, mas eu não tinha letramento racial, que fui construindo nesses processos formativos que a fundação proporcionava e nas visitas que eu fazia com os jovens a lugares como o Museu Afro.

Mas não foi um processo linear, muito menos fácil. Eu sentia que, em alguns momentos, a minha escuta era diferente da que outros formadores brancos recebiam. Quando eu ia me colocar, não tinha o mesmo lugar de atenção. E percebi que eu tinha que apresentar o meu currículo primeiro antes de falar, tinha que provar que estava naquele espaço de poder por direito.

Quando comecei a trabalhar efetivamente com as questões raciais, mergulhei em estudos sobre macropolítica e mobilização social, me aproximei de muitas lideranças inspiradoras. E tive que superar barreiras diárias, desde a convivência, por exemplo, com um novo contexto quando passei a trabalhar na sede da Fundação Tide Setubal, no Itaim Bibi. Era um universo totalmente diferente, um território em que eu, de fato, não me sentia representada e via a discriminação racial em muitos lugares, na rua, nos restaurantes? Fui percebendo que eu precisava me posicionar e, às vezes, me impor para conquistar aqueles espaços.

O resultado dessas vivências se reflete diretamente no meu trabalho, nos projetos ligados à formação de lideranças negras, de mulheres em situação de vulnerabilidade. Eu procurei apoio em pessoas que me fortaleceram, construí meu círculo de confiança. E é justamente esse o propósito de iniciativas que hoje eu coordeno por meio do programa de Raça e Gênero na Fundação Tide Setubal, como a Plataforma Alas (Apoio ao Desenvolvimento de Lideranças Negras). O objetivo é investir na formação de pessoas negras para aumentar a diversidade racial em espaços de decisão. A iniciativa apoia a população negra de todo o país em diferentes momentos da vida — ainda na escola, na faculdade ou no mercado de trabalho —, com aporte financeiro e oportunidades de aprendizagem, para que se desenvolvam plenamente. Nossa proposta é construir um pacto coletivo pela equidade, provocando toda a sociedade e lideranças brancas a participarem ativamente deste movimento. As ações decorrentes da Alas são contínuas, se desenvolvem ao longo de todo o ano, o que inclui o Mês da Filantropia Negra, mas não só ele.

Historicamente, as pessoas negras são excluídas pela cor de sua pele desde a infância. São nítidas as diferenças sociais entre brancos no cotidiano, em aspectos como acesso à cultura, ensino escolar de qualidade, formação acadêmica, moradia digna e assistência à saúde. Já nascemos com uma enorme desvantagem e precisamos de muito, mas muito esforço para reparar tantas desigualdades estruturantes. Daí a importância de recursos que propiciem a continuidade dos planos e projetos de cada um, respeitando as especificidades, as mudanças de rumo que fazem parte da vida.
A minha mãe conseguiu se formar no ensino médio. Hoje, eu estou fazendo mestrado. E a minha filha de 10 anos já tem muito mais oportunidades, tem acesso a tudo que eu não tive.

Quando você investe no potencial de uma liderança negra, você não está fortalecendo apenas uma pessoa, você está investindo também nas gerações seguintes. “


Viviane Soranso dos Santos, psicóloga e ativista social com foco na inclusão de raça e gênero. Mestranda no programa Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. Atua na Fundação Tide Setubal como coordenadora do Programa Raça e Gênero e na implementação do Comitê de Diversidade e Inclusão da FTAS. Trabalhou em ações diretas nas temáticas de juventudes no território de São Miguel Paulista. É coautora do livro “Mundo Jovem”.

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