Justiça, valor supremo do Leblon à Maré
por Kenarik Boujikian
E a cidade que tem braços abertos
Num cartão postal
Com os punhos fechados da vida real
Lhes nega oportunidades
Mostra a face dura do mal
Alagados, Trenchtown, Favela da Maré
(Alagados, de Hebert Viana, Bi Ribeiro e João Barrone )
Não é de hoje que se diz que o “Tribunal está fechado para os pobres” (Ovidio). Isso fica muito claro quando se faz um levantamento dos mandados de busca e apreensão coletivos e se observa que nunca são expedidos nos locais considerados mais nobres para se viver.
Na verdade, não podem ser expedidos de forma coletiva. Nunca!
Em São Paulo, faz um tempão, tais mandados eram frequentes, mas esta anomalia, ao que parece, não existe mais. Daqueles que se tinha notícia, rigorosamente, eram em favelas, para encontrar drogas ou armas, o que sabemos são encontráveis em qualquer lugar desta cidade.
O Direito Penal é seletivo, razão de não termos notícia de mandados de busca coletivo nos bairros considerados “mais ricos”, nos condomínios de alto luxo, em prédios dos “Jardins”.
A Constituição Federal elegeu a casa como o local sagrado de cada pessoa. Tanto que, só se pode nela entrar sem o consentimento do morador, em raras situações, como ter uma ordem judicial.
Mas para ter valor, não basta que o papel tenha a assinatura de um juiz. Necessário que o juiz respeite as regras para autorizar que o Estado, através da polícia, ingresse na casa. Se assim não fizer, o juiz é que será o grande violador dos direitos e garantias fundamentais, o juiz é que será o fora da lei.
Atentem: todos os atos que forem praticados com este mandado imprestável, não terão qualquer valia, pois a exigência primeira é que o mandado seja expedido dentro da apuração de um determinado crime. Logo, meras suspeitas de delitos não justificam um mandado. Tem que ser algo concreto.
Mais. Nos crimes comuns, a busca só pode ser solicitada e executada pela polícia judiciária, ou seja, só a polícia civil ou federal, o delegado de polícia e o delegado federal. Portanto, polícia militar, guarda civil, exército estão fora de cogitação para cumprimento de qualquer mandado de busca.
Coletivo: jamais, pois a lei exige que na hora da expedição haja um crime e indícios graves sobre determinada pessoa. Não pode ser genérico, incerto, vago, para busca em toda uma região, um quadrilátero, uma rua, uma favela, uma comunidade, na casa de qualquer pessoa. Tem que dizer quem é e qual o crime que consta da apuração e em qual casa se quer buscar.
No Estado de Direito, o processo penal é instrumento de proteção dos direitos fundamentais. Se a atuação for violadora, fatalmente a busca torna ineficaz a apreensão.
A casa é asilo inviolável do indivíduo e o Estado tem a obrigação de garantir que ela assim permaneça, do Leblon até a Maré, para que os direitos de todos nós não sejam vilipendiados.
Seres humanos não são divisíveis em categorias e todos deveriam fazer o exercício de se colocar no lugar do outro e pensar que o fio condutor para a atuação do Estado tem que ser sempre a dignidade humana.
A pergunta que fica é: a quem interessa?
Kenarik Boujikian é presidenta da Associação Juízes para a Democracia
Fonte: Viomundo