Negros estão mais empoderados na internet, mas acesso ainda é desigual

Representatividade negra cresce na rede e influencia mídia tradicional. Universalizar o acesso torna-se parte da luta contra a desigualdade

Por Ana Claudia Mielke*, na Carta Capital 

Mulheres negras discutem apropriação tecnológica para combater desigualdades raciais durante o VII Fórum da Internet no Brasil

 

A internet se transformou em uma potente ferramenta de empoderamento de negras e negros. Pipocam iniciativas pelo país que visam construir narrativas positivas acerca da negritude.

Coletivos de comunicadores e comunicadoras negras e negros pautam questões fundamentais como genocídio da juventude negra, enquanto blogueiros e blogueiras se afirmam como influenciadores digitais, a partir de postagens em campos tão diversos como política, moda, estética e trabalho – este último com visibilidade a inovações e startups que aceleram empresas de negras e negros no mercado.

Mas, quando se fala em Internet no Brasil, deve-se considerar ainda o enorme gap que existe no acesso. Apenas 54% da população brasileira possuía acesso à internet em seu domicilio em 2016 (Pesquisa TIC Domicílios realizada pelo CETIC.br). Aproximadamente 95 milhões de brasileiros e brasileiras não possuem nenhum tipo de conexão em casa, nem mesmo a partir do celular.

Considerando a mesma pesquisa, os dados econômicos das famílias conectadas são bastante relevantes. O abismo digital é profundo entre aqueles que ganham até um salário mínimo (70%), caindo um pouco entre os que recebem até dois salários mínimos (54%) e ainda mais entre os que ganham mais de dois salários (35%). Mas o que os dados apontam sobre a população negra brasileira?

Em 2014, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) produziu uma série histórica da pesquisa sobre Acesso à Internet e à Televisão e Posse de Telefone Móvel Celular para Uso Pessoal (PNAD2014TI).

A partir dela foi evidenciado que, da população com mais de 10 anos que havia acessado a internet nos últimos três meses antes da realização da pesquisa, 61,5% eram brancos, enquanto, entre os negros e negras, este percentual era de apenas 39,5%.

E este abismo já foi muito pior: em 2003, um branco nas mesmas condições de um negro tinha 167% mais chances de acessar a internet, segundo o Mapa da Exclusão Digital (Fundação Getúlio Vargas).

O dado da PNAD, embora não seja conclusivo, pode ser analisado à luz das outras disparidades que se reproduzem ano após ano e são identificadas pela Pesquisa TIC Domicílios, como o fato de o percentual de desconectados aumentar nas zonas rurais, nos estados do Norte e Nordeste do país e, também, entre os menos escolarizados.

Isto significa que, se a falta de acesso à internet ainda reproduz abismo socioeconômico e regional no Brasil certamente também reproduz mais um abismo racial no país. Para inferir este resultado, basta tomar como referência a conclusão de Sueli Carneiro de que raça é um estruturante de classe no Brasil.

Ausência de informação e retrocessos

A produção de dados sobre usos e acessos da população brasileira deveria ter como finalidade a produção de soluções que objetivassem diminuir o abismo digital existente no país. O Estado, neste sentido, deveria promover políticas públicas para mitigar as disparidades que separam ricos e pobres, sul/sudeste do norte/nordeste, populações urbanas das rurais. E por que não? Negros/as e brancos/as.

Faltam dados, no entanto, que apontem as desigualdades raciais quando assunto é apropriação tecnológica, acesso às redes e hábitos de usuários, como destacou Silvana Bahia, do PretaLab, iniciativa que tem, entre outros objetivos, produzir mapeamentos sobre o assunto.

A fala foi feita durante a mesa Mulheres Negras e Tecnologias, dentro do VII Fórum da Internet no Brasil, realizado entre os dias 14 e 18 últimos, no Rio de Janeiro. Trata-se da primeira iniciativa negra promovida dentro do principal espaço de discussão das políticas de internet do país, que por sua vez é realizado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), desde 2011.

Infelizmente, em tempos de profunda crise institucional, em que o Estado segue sendo gerido por atores ilegítimos, pouco se pode esperar em termos de políticas públicas de inclusão e defesa dos bens comuns.

A possível aprovação do PLC 79, que retira as garantias de universalização do acesso e de modicidade tarifária como parte das obrigações das empresas que entregam a infraestrutura de conexão; a dificuldade do governo em garantir o interesse coletivo no uso do Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações (SGDC), que deveria promover a conexão dos rincões do país, a partir da implementação do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) e, a quase inevitável falência da OI devem não apenas contribuir para aumentar o abismo digital entre grupos da sociedade, como também, levar uma parte significativa do país a um apagão digital.

Impacto desigual

A possibilidade de um apagão terá consequências mais significativas sobre os grupos historicamente invisibilizados ou negativamente representados nos meios de comunicação tradicionais. São estes os que sofrerão mais com a impossibilidade de acessar a Internet, em virtude da falta de oferta do serviço em sua região e/ou por conta dos elevados preços que poderão ser praticados.

Talvez, para quem cresceu numa conjuntura em que redes sociais e comunicação por smartphones são um dado quase natural, não seja fácil enxergar as consequências produzidas pela desregulamentação total do setor de telecomunicações no Brasil. No entanto, para quem viveu o processo de transição, as possibilidades de retrocessos são evidentes.

É possível imaginar o vazamento do vídeo que flagra Willian Waack em cena de racismo explícito há 10 ou 15 anos atrás? E mesmo que ele fosse denunciado àquela época, será que a informação teria o mesmo alcance de público que teve nos dias atuais em função da viralização na Internet? E Rafael Braga? Será que sua história conseguiria furar o bloqueio da mídia comercial?

Ousaria dizer que sequer o caso recente de Diogo Cintra, jovem artista negro, morador da periferia de São Paulo que foi violentamente espancado após ter sido “qualificado” por seguranças do Terminal Parque Dom Pedro como assaltante, teria tido tanta repercussão nos meios tradicionais de TV não fosse sua reverberação na rede.

Narrativas da negritude se multiplicam

Ninguém mais duvida do poder da internet enquanto promotora de novas narrativas. Representatividade negra, embora ainda bastante reivindicada na televisão e no cinema – com razão – agora ocupa outros espaços. E não são brechas, são espaços significativos e em crescente expansão.

À mídia tradicional tem restado o papel de acompanhar esta movimentação e, como consequência da força da rede, pautar temas que até então eram considerados menores ou vistos como problemas de grupos específicos (de guetos) – mesmo quando negros (pretos e pardos) já ultrapassavam 50% da população brasileira.

Basta olhar a programação da TV aberta para perceber o aumento da produção de conteúdos pautados na temática da negritude e/ou do enfrentamento ao racismo. No mês da Consciência Negra isto fica ainda mais marcado. Mas não dá pra negar que até 10, 15 anos atrás esta produção era infinitamente menor.

A mudança de comportamento da mídia tradicional deve ser encarada como um ganho da luta promovida pelos movimentos de negros e negras, em diferentes esferas: acesso à educação, políticas de ações afirmativas, maior ingresso no mercado de trabalho e maior incidência na política.

Mas ela deve também ser analisada à luz da potencialidade de democratização e difusão de narrativas da população negra, de mulheres, da população LGBTQ a partir da Internet. Também é resultado de uma pressão que hoje se impõe do ambiente das redes digitais para as grandes redes de TV. Ganha aqui, ganha lá!

Garantir políticas públicas de acesso para impedir que a internet continue restrita aos ricos, moradores das zonas urbanas, das maiores capitais do país, que seja instrumento de comunicação que atenda prioritariamente aos brancos deve, portanto, estar no horizonte daqueles que lutam pelo enfrentamento da desigualdade racial do país.

Permitir que as narrativas negras surjam, ressurjam e se reinventem no espaço da rede e alcancem um número cada vez maior de pessoas é essencial para diversificar e amplificar vozes, fontes de conhecimento e alavancar o empoderamento das populações mais periféricas.

E esta produção e compartilhamento em rede dependem de expandir o acesso de negras e negros a este importante instrumento de democratização da comunicação que se tornou a Internet no Brasil.

*Jornalista, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, e coordenadora executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

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