Quatorze anos após a criação da lei Maria da Penha, mulheres vítimas de violência doméstica em Minas Gerais ainda esbarram na escassez de políticas públicas para se afastarem definitivamente do agressor. Somente Belo Horizonte tem uma delegacia especializada que funciona 24 horas e o governo do estado mantém abrigos em apenas 1,5% municípios mineiros.
Acuadas com os agressores em isolamento social por causa do coronavírus, muitas mulheres deixaram de denunciar, segundo a Polícia Civil. Resultado: de março a julho deste ano, o número de registros de mulheres vítimas de violência caiu 27,7% em Minas Gerais, mesmo com a criação do aplicativo MG Mulher e a possibilidade de fazer boletim de ocorrência pela internet.
“Alguns fatores de risco estão mais em evidência nas famílias. Com o isolamento social, existe um controle maior do agressor sobre a vítima, que fica sem contatos de trabalho, familiares, amigos. Além disso, há um aumento de uso de bebida alcoólica e até drogas. A questão financeira, a instabilidade provocada pela pandemia, pode gerar maior aumento de conflitos de estresse, culminando no aumento da violência contra a mulher”, explicou a delegada Isabella Franca, chefe da Divisão Especializada em Atendimento à Mulher, ao Idoso, à Pessoa com Deficiência e Vítimas de Intolerâncias da Polícia Civil de Minas Gerais.
A delegada observa que, quando houve flexibilização do isolamento social, mas permaneceram fatores como uso de bebida e álcool, além da instabilidade financeira, o número de ocorrências tornou a crescer.
Segundo a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), em março deste ano, houve queda de 14,3% em comparação com o mesmo mês do ano passado. Abril teve queda ainda mais expressiva levando em conta abril de 2019: 15,8%. Em maio, a redução foi de 7,9%. Em junho, na contramão da redução, foi registrado aumento de 3,4%: em 2019, foram 11.086 ocorrências e, em 2020, 11.464.
Para o professor Bráulio Alves, que integra do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a subnotificação ocorre mesmo sem isolamento social, por falta de iniciativas que facilitem e até incentivem a denúncia por parte das mulheres.
“Tem muita subnotificação, com ou sem pandemia. É difícil sobretudo para as mulheres. Existe um problema muito grave, que é criar mecanismos que facilitem o registro, ou seja, que garanta que este registro tenha andamento por parte da Justiça e que a vítima seja afastada do agressor”, afirmou.
Para analisar a subnotificação dos registros no início do isolamento social, Bráulio encabeçou uma pesquisa que constatou três situações distintas de violência doméstica: algumas pessoas relataram que aconteceu pela primeira vez; várias relataram que sempre viveram em ambiente de agressividade; outras falaram que aconteceu com maior intensidade.
Bráulio enfatizou que a trajetória de violência é cumulativa: o grau de agressividade aumenta enquanto o tempo entre um e outro episódio diminui. Por isso, o grande desafio, segundo ele, é criar mecanismos para que a mulher interrompa esta trajetória já no começo. “Acontece que, quando a vítima chega a registrar, já foi aconteceu diversas vezes. Mas o que a gente tem que mudar é que tem que interromper a primeira vez”.
Sem delegacias e sem abrigos
A subnotificação de casos de violência contra a mulher ainda pode ser agravada pela falta de atendimento especializado a mulheres no interior do estado e pela escassez de locais presenciais para acolhimento da mulher.
Em Minas Gerais, apenas Belo Horizonte tem delegacia dedicada a este tipo de registro de ocorrência com funcionamento 24 horas. Apesar de os municípios menores não terem o serviço à noite e aos finais de semana, a delegada Isabella Franca nega que o atendimento fique comprometido.
“Os policiais do interior também são capacitados para fazer o atendimento adequado a esta mulher vítima de violência, seguindo todos os trâmites, como exame de corpo delito e encaminhamento à Justiça de pedido de medida protetiva”.
Ainda segundo Isabella, em caso de necessidade de afastamento do agressor, a prioridade é que a mulher vá para casa de um parente ou um amigo, em local seguro. A vítima só será encaminhada para um abrigo, que tem inúmeras restrições, inclusive de visitas, em último caso, pontuou a delegada.
Mas o problema pode ser falta de serviços para abrigar estas mulheres. De acordo com a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese), apenas a capital e as cidades de Contagem, Governador Valadares, Guaxupé, Lagoa Dourada, Montes Claros, Nova Lima, Poços de Caldas, Sabará, Santa Luzia, São João da Ponte e São João Del Rei possuem abrigos para receber as vítimas.
São 114 vagas para mulheres e 101 para crianças. Estas casas oferecem atendimento psicológico individual e atendimento jurídico, com acompanhamento direto ou por meio de encaminhamentos à Defensoria Pública (Nudem).
Segundo o governo, para assistência às mulheres em situação de violência nos municípios que não possuem abrigo, o atendimento é feito pelos Centros de Referência em Assistência Social, conforme o caso.
Atendimento remoto dificulta acesso
Com a pandemia, outros serviços que não são abrigos, mas acolhem e prestam apoio psicológico às mulheres estão funcionando apenas de forma remota, o que dificulta o acesso das mulheres. É o caso do Benvinda, serviço de atendimento à vítima de violência doméstica mantido pela prefeitura.
A procura pelo serviço diminuiu, comparando o primeiro semestre deste ano com o do ano passado: enquanto em 2019 foram 851 atendimentos, em 2020 foram 726.
A redução da procura pelos serviços de acolhimento do Benvinda tem refletido na Casa de Referência da Mulher Tina Martins, que optou por continuar o serviço presencial, com todas as medidas sanitárias contra o coronavírus.
“Nestes locais, o atendimento tem sido feito por um celular, número diferente daquele que consta nos sites de pesquisa, por exemplo. E o atendimento remoto exige recursos tecnológicos que não necessariamente as mulheres têm condições de usufruir. Por isso, a gente optou manter o atendimento presencial”, afirmou Indinara Xavier, uma das coordenadoras.
A casa, que é gerida por uma organização social, acolhe e faz encaminhamento de mulheres em situação de violência doméstica para um abrigo seguro. O serviço continua presencial, com todos os protocolos para garantir a saúde das mulheres que buscam atendimento. O telefone para contato é 3658-9221.
Ocorrência online e MG Mulher
Para tentar reduzir a subnotificação, a Polícia Civil lançou, em abril, o aplicativo MG Mulher. Nele a usuária encontrará os endereços e telefones mais próximos da sua localização que podem auxiliá-la em caso de emergência, como delegacias da Polícia Civil, unidades da Polícia Militar e Centros de Prevenção à Criminalidade.
O aplicativo permite, ainda, que a mulher crie uma rede colaborativa de contatos confiáveis que ela pode acionar de forma rápida, caso sinta que está em situação de perigo. Essa rede de amigos e familiares pode ser acionada via SMS e a sua localização será enviada.
Além disso, desde 8 de julho, a Delegacia Virtual da Polícia Civil de Minas Gerais passou a registrar ocorrências de lesão corporal, vias de fato, ameaça e descumprimento de medida protetiva de urgência contra mulheres, crianças, idosos e pessoas com deficiência.
Para isso, o solicitante precisa especificar o tipo de medida protetiva necessária, de acordo com as opções relacionadas na tela.
De acordo com a delegada Isabella Franca, quando uma mulher faz a ocorrência pedindo medida protetiva pela internet, os trâmites seguem normalmente, até a decisão da Justiça, que ocorre em até 48 horas.