Perfil de pobreza muda em dez anos do programa Bolsa Família

Casas dos atuais beneficiários têm paredes de barro e telhado de palha com antena parabólica, máquina de lavar roupa e computador

Adultos desdentados, crianças na escola. Não faltam celulares e antenas parabólicas em casas de paredes de barro, telhado de palha e chão de terra. Mas os lares de quem recebe Bolsa Família também retratam uma mudança no perfil da pobreza brasileira: casas foram ampliadas e reformadas. Muitas passaram a ter piso de cerâmica, forro no teto e eletrodomésticos de todo tipo, como geladeira com freezer, máquina de lavar roupa, forno de micro-ondas e computador com conexão de banda larga na internet.

Em Formosa (GO), a 70 quilômetros de Brasília, a empregada doméstica Doraci Pinto de Melo paga R$ 50 por mês pela conexão de internet. Suas filhas de 14 e 16 anos são as que mais usam o computador: para fazer trabalhos escolares e acessar o Facebook. No fim da década de 1990, a residência não tinha banheiro nem água encanada. Hoje o piso é de cerâmica.

A casa de alvenaria está no meio de uma reforma: vai ganhar uma cozinha maior e um terceiro quarto, que se tornou necessário depois que a filha mais velha, Irineide, de 23 anos, e a neta Eloísa, de 3, voltaram a morar com a família. Doraci recebe R$ 248 do Bolsa Família. O marido é eletricista e tem moto. Seu emprego numa firma de construção de Brasília é com carteira assinada.

As mudanças da última década são ainda mais profundas quando comparadas à melhoria das condições de vida entre gerações da mesma família. Em Timbiras (MA), a beneficiária Maria do Socorro Gomes Lopes, de 53 anos, é analfabeta e aprendeu a assinar o nome recentemente, depois de frequentar uma turma do programa Brasil Alfabetizado. Sua filha Maria Edinete, de 24 anos, está na faculdade e cursa Pedagogia. A geladeira foi comprada com o dinheiro que o marido ganhou, anos atrás, cortando cana-de-açúcar em São Paulo.

Em Caxias (MA), a 360 quilômetros de São Luís, o ajudante de pedreiro Francisco das Chagas Sousa Silva, de 39 anos, conta que começou a trabalhar aos 10 anos. Filho de lavradores, ajudava os pais na roça. Seus dois filhos têm 18 e 20 anos e estão no ensino médio. O mais jovem ingressou este ano no serviço militar obrigatório.

Francisco das Chagas é casado com Ana Natália Rodrigues Silva, de 38, beneficiária desde a criação do Bolsa Família. Ela recebe atualmente R$ 70 por mês e é a única que não tem celular. Na época em que se cadastrou, Ana Natália lembra que só tinha certidão de nascimento: foi preciso providenciar carteira de identidade, carteira de trabalho e CPF.

A família reformou a casa no ano passado: as paredes de barro foram revestidas de cimento e pintadas de branco. O chão de terra também foi coberto com cimento. Ana Natália conta que usou o dinheiro do Bolsa Família para comprar o uniforme escolar: uma camiseta (R$ 16) e um par de tênis (R$ 49,50) para cada filho. Os tênis foram parcelados em quatro vezes. O armário da sala, em nove prestações de R$ 128,50 (total de R$ 1.156,50).

Em Timbiras (MA), Francisco Rodrigues da Silva, de 60 anos, mora numa casa sem banheiro, geladeira nem água encanada, com paredes de barro, muitas frestas e telhado de palha. O chão de terra é inclinado. Quando dá temporal, a chuva molha a televisão de 14 polegadas, já providencialmente coberta por um plástico. A água usada para cozinhar e beber vem do poço de um vizinho e é carregada diariamente em baldes. Não há filtro.

Francisco foi abandonado pela mulher há três anos e mora com três dos sete filhos. Diz que recebe R$ 366,50 do Bolsa Família. O Portal da Transparência, da Controladoria Geral da União, porém, registra R$ 392. Todos dormem em redes. O fogão é de barro. Cascas de coco são usadas como carvão. A fumaça deixa o ar irrespirável. O filho mais velho, dentre os que vivem com Francisco, tem 16 anos e abandonou a escola, sem nunca passar do 1º ano do ensino fundamental. As irmãs dizem que o garoto fuma maconha. Uma vizinha acusou-o de roubo.

A casa tem apenas duas peças: um quarto e uma sala-cozinha. Sacos de arroz e outros alimentos ficam empilhados num guarda-roupa. Na cozinha, a carne é guardada em bacias. Ao visitar a casa de Francisco, no mês passado, O GLOBO encontrou apenas os filhos. O pai chegou mais tarde, de bicicleta, carregado de compras: trazia alimentos. As filhas de 5 e 11 anos tinham faltado à escola naquela semana. Segundo o pai, porque ficaram lavando roupa num poço próximo. A secretária de Assistência Social de Timbiras, Joyce Cachina, acompanhava a visita e acionou o Conselho Tutelar.

— Sou pai e mãe — disse Francisco.

Órfão desde criança, ele conta que cresceu na roça e trabalhava numa pedreira até recentemente. A antena parabólica foi comprada em cinco parcelas de R$ 54, segundo ele. Francisco está convencido de que sua vida vai melhorar: em março, ele passou a receber aposentadoria rural no valor de um salário mínimo (R$ 678).

Alagoas ainda é o primeiro em analfabetismo

Em Maceió, dez anos e duas gerações depois, o programa Bolsa Família ainda sustenta a jovem Ana Vitória, de 12 anos, neta de Ione Miguel dos Santos. São pouco mais de R$ 50, que se misturam nas finanças da casa, no bairro de Pescaria, litoral norte da capital alagoana.

A mãe de Ana Vitória, Alice, trabalha de faxineira. Cobra R$ 40. Tentou fazer um curso profissionalizante no Senai para mudar de vida. O acesso ao Bolsa Família facilita esse novo caminho. Ouviu que as salas estavam cheias de gente. Espera uma nova chance ainda este ano.

O pai dela é quem salva o sustento da casa: ele é aposentado e recebe um salário mínimo. Faz ainda bicos. Eles tentam incluir a outra neta, Évia Lavina, de 2 anos, no programa:

— Sem o Bolsa, meu filho, seria um sufoco — resume a avó de Ana Vitória, que virou a “babá” das netas.

A pobreza da família atravessa o tempo e não envelhece. Dona Ione nasceu no bairro vizinho, Ipioca — berço do primeiro presidente do Brasil, Floriano Peixoto. Casou e vive há 30 anos na mesma casa, onde nasceu Ana Vitória. Doente, a avó aposta no futuro da neta:

— Ela nunca repetiu um ano. E só tira nota alta. Se Deus quiser, vai ser alguém na vida — conta a avó.

A neta sorri e continua assistindo a um dramalhão mexicano na televisão. Perto dela, uma placa pendurada na parede oferece um “mimo aos netos”: “Na casa da vovó sempre tem 1 real”.

A filha de Dona Ione é uma das 18.141 pessoas que dependem do Bolsa Família desde 2003 no estado — que, dez anos depois, é o terceiro mais pobre do Brasil, só perdendo para o Maranhão e o Piauí. Além disso, o nível educacional da população acaba por inviabilizar a instalação de indústrias ou mesmo supermercados. Alagoas ainda é o primeiro — como há dez anos — no número de analfabetos no país.

— Meu filho, o que eu queria pedir a Dilma é que ela incluísse a minha neta Évia no Bolsa Família. O resto, a gente se vira. Foi sempre assim — diz dona Ione.

Fonte: Globo

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