Por que parei de me depilar e aceitei que sou uma ‘mulher barbada’

Me senti mais confiante por ser eu mesma, sem ligar para o que os outros pensam.

Por Bri Crofton, do HuffPost Brasil  

“Eu realmente sonhava em achar um circo em que pudesse viver em paz como a mulher barbada, porque parte de mim sabia que não havia nada errado com meu corpo e ninguém tinha o direito de me maltratar.” (Foto: BRI CROFTON/Arquivo Pessaol)

Os pelos começaram a crescer no meu rosto quando eu tinha 12 anos, uns dois depois de eu começar a menstruar. Fui levada ao Boston Children’s Hospital, onde diagnosticaram síndrome do ovário policístico. Eu tinha todos os sintomas que os médicos procuravam, menos os cistos no ovário.

Já adulta, fiz um raio-X que mostrou um cisto dermoide (teratoma) com dentes internos. Esse tipo de cisto é benigno e inofensivo, a menos que cresçam a ponto de se romper. Há quem acredite que eles sejam os restos de gêmeos que foram absorvidos pelo útero.

Não demorou para que minha mãe me sujeitasse a vários métodos de depilação. Tive de aturar pelos arrancados, branqueamento e cera. Minha pele é sensível; tudo isso dói. Na cabeça da minha mãe, eu já era gorda, e ela não queria que tirassem sarro de mim. Para isso, tinha de remover os pelos ou camuflá-los. Minha opinião era irrelevante.

Até ser vencida pelo cansaço, nem sequer tinha me ocorrido ficar constrangida por causa dos pelos faciais. Era a mesma coisa com meu peso. Queria poder viver em paz com meus pelos, mas minha mãe e meu padrasto faziam tanto bullying que acabei me tornando uma pessoa muito ansiosa. Seria engraçado, se não fosse triste.

Ela diz que fez o que fez por amor, que queria evitar que eu fosse maltratada. Mas ela própria foi uma das primeiras bullies que eu tive de enfrentar, e certamente foi a que mais danos meu causou. Às vezes eu pedia aos prantos que ela parasse. Realmente sonhava em achar um circo em que pudesse viver em paz como a mulher barbada, porque parte de mim sabia que não havia nada errado com meu corpo e ninguém tinha o direito de me maltratar.

Até minha mãe me vencer pelo cansaço, nem sequer tinha me ocorrido ficar constrangida por causa dos pelos faciais.

Saí de casa aos 15 anos, depois que meus pais descobriram que eu sou queer e ficaram loucos. Foi a gota d’água. Nossa relação era complicada, porque eu ainda era criança e não tinha tido a chance de crescer – apesar de ter sido forçada a crescer rápido. Mantive contato com minha família por bastante tempo – mais do que deveria ―, mas também passávamos longos períodos sem nos falar.

Mesmo longe da depilação forçada da minha mãe e das piadas do meu padrasto (ele me ridicularizava porque eu não era feminina o suficiente e me criticava por não depilar as axilas e as pernas quando eu era adolescente), a ideia de que os pelos no rosto eram motivo de vergonha já estava enraizada em mim.

Eu conseguia ignorar as críticas da família a respeito dos pelos no corpo. Sentia atração por mulheres com pelos. Havia várias assim na cena das meninas punk e das riot girls. Sabia que aquilo era só um padrão patriarcal de beleza. Mas eles me pegaram desde cedo por causa da barba.

Até quando eu estava morando na rua, procurava um banheiro para me barbear. Ou então deitava a cabeça no colo da minha melhor amiga, que arrancava os pelos para mim. Foi um dos rituais mais íntimos e mais bondosos que compartilhei com alguém.

Minha mãe nunca me explicou o que é a síndrome do ovário policístico. Era tipo um segredo terrível. Me receitaram anticoncepcionais quando eu tinha 12 anos, para regular minha menstruação e reduzir o crescimento da barba. Sabia que ela crescia por variações hormonais, e só. Tiravam sarro de mim o tempo todo porque eu era gorda – minha família e até mesmo desconhecidos, mas não lembro de ninguém me explicando que era incrivelmente fácil para mim ganhar peso e praticamente impossível perdê-lo por causa dos hormônios. Eu estava literalmente me matando de fome ou fazendo oito horas de exercícios por dia.

Só fui entender o que estava acontecendo comigo quando consultei um endocrinologista, aos 20 e poucos anos. Ela também me diagnosticou com síndrome do ovário policístico. Mas dessa vez eu soube que a doença era a responsável pelo meu perfil hormonal, meu problema de peso e vários outros sintomas. Quando conversei com minha mãe, estava empolgada para contar que aquela coisa que estava errada comigo na verdade tinha nome. Ela simplesmente disse: “Eu sei. Foi o que nos disseram no Children’s Hospital”.

A vergonha, a dor e a pele irritada acompanharam minhas tentativas de depilar o rosto durante quase 26 anos. Como a vergonha estava tão enraizada, eu me barbeava todos os dias, ou dia sim, dia não. O crescimento dos pelos flutuava, dependendo do meu acesso aos médicos e aos hormônios. Se alguém tocasse a campainha de casa antes de eu tomar banho, entrava em pânico. Usava uma echarpe para buscar a correspondência ou ir até a lojinha da esquina. Mesmo assim, morria de medo que a echarpe caísse ou que alguém visse minhas costeletas. A sensação era de que todas as pessoas à minha volta estavam olhando para minha barba.

Além de outros traumas que sofri quando era pequena, essa ansiedade me levou a me automedicar com álcool durante quase uma década – de quando saí de casa até meus 20 e poucos anos. Simplesmente não conseguia lidar com a pressão para esconder essa parte natural de mim mesma. Serei eternamente grata à minha esposa por me convencer de que eu era uma pessoa muito melhor sem beber. Ela também me ajudou a lidar com o trauma, processando as experiências e emoções que estavam reprimidas havia anos.

No fim do ano passado, quando estava prestes a completar 38 anos, parei de fazer a barba. Já tinha tentado antes, mas, por causa dos remédios e de alergias alimentares, o resultado ficou bizarro. Tentei sentir orgulho da experiência, mas a tristeza foi maior, e voltei a raspar a barba.

Depois de fazer mudanças na minha dieta e parar de tomar os medicamentos, que causavam fortes efeitos colaterais e também reduziam o crescimento dos pelos, fiz uma segunda tentativa – muito mais bem sucedida.

No fim do ano passado, quando estava prestes a completar 38 anos, parei de fazer a barba. Foi surpreendente. Me senti mais confiante por ser eu mesma, sem ligar para o que os outros pensam.

Foi surpreendente. Me senti mais confiante por ser eu mesma, sem ligar para o que os outros pensam. Bastou parar de fazer a barba e abrir mão da vergonha que estava inculcada em mim desde tão cedo. Não achei que seria não simples ou tão rápido. É incrível como os seres humanos florescem quando podem ser quem realmente são.

Comecei a procurar e me conectar com outras mulheres barbadas. Muitas delas dizem que aceitam a barba como parte de sua feminilidade, como os pelos faciais em si são femininos. Tenho muito respeito e carinho por elas e por suas mensagens. Sempre admirei as mulheres que aceitaram suas barbas quando eram jovens. Comecei a pensar na minha androginia literal e como sempre abracei as pessoas e conceitos andróginos. Comecei a pensar em mim mesma como não-binária, mas tinha medo de falar no assunto.

Tinha medo de que as pessoas que amo e respeito achassem que eu estava me apropriando de uma identidade que não era minha, simplesmente porque eu não era  mulher – mas também nenhuma parte minha jamais pareceu masculina. Vivo num espectro que vai de mulher a andrógina, dependendo do momento. Sou uma trindade de mulher, andrógina e queer de gênero.

Perceber e dividir isso com os outros me fez sentir pela primeira vez verdadeiramente aberta comigo mesma e com o mundo. É uma sensação incrível. Tudo o que tive de fazer foi parar de esconder uma parte de mim que fui forçada a negar desde a infância.

Reconhecer e abraçar minha própria identidade é muito poderoso. Apesar de ter cortado relações com minha mãe há sete anos, tenho uma família que escolhi. Eles me amam e me apoiam, independentemente dos pelos que eu tenha – ou não tenha. Eles não me criticam por causa do meu peso nem por sonhar com coisas que não se encaixam nas definições estreitas de “normal” ou “aceitável”.

Muita gente é extremamente amável, mas é claro que tem pessoas terríveis. Em geral são homens que me olham com cara de raiva, tentando entender o que eu sou e se represento alguma ameaça à identidade deles. Nunca me abordaram, mas ando com um spray de pimenta, porque, em certos momentos, não me senti completamente segura. É claro que tem os trolls da internet, mas eles sempre aparecem quando alguém demonstra coragem e vulnerabilidade.

Uma coisa infeliz aconteceu, entretanto. Existem mulheres hétero e cis, incluindo algumas que sofrem de síndrome do ovário policístico, que continuam me humilhando e me diminuindo. Algumas respondem aos meus posts que celebram minha barba com sugestões de métodos de depilação.

Comecei essa jornada de exposição pública com a esperança de normalizar os pelos faciais das mulheres. As histórias que ouvi me inspiraram a parar de fazer a barba. Nunca sequer me ocorreu que eu pudesse inspirar outras pessoas, mas, quando comecei a ter feedback de mulheres barbadas, incluindo mulheres trans que decidiram manter os pelos no rosto e queers de gênero que gostaram da minha história, minha perspectiva mudou.

Aí conheci Kate Bornstein, uma trans não-binária que me abriu muitos caminhos. Já escrevi em outros lugares como a presença e a graciosidade dela são comoventes, mas uma coisa que chamou minha atenção acima de todas as outras foi a explicação budista que ela deu para eloquência: “Sua eloquência é diretamente proporcional a quanto sofrimento você reduziu dizendo a verdade”.

Chorei ao ouvir essas palavras. De repente, senti que tudo isso tinha um propósito maior. Se eu puder ser a voz que durante tanto tempo eu precisei ouvir, a voz da mulher barbada ou a menos óbvia mas ainda válida voz da pessoa queer de gênero, estou fazendo a coisa certa. As pessoas que precisam ouvir minha voz vão me encontrar.

Faz sete meses que finalmente tive coragem de parar de me barbear. É incrível como me sinto muito mais feliz e confiante. Quem me conhece há anos diz que nunca me viu tão contente – tão eu mesma.

Este texto foi originalmente publicado no HuffPost US e traduzido do inglês.

 

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