Presidente recuou, por ora

Nunca neste século a inflação oficial foi tão alta em agosto. O IPCA, índice da meta, bateu projeções de todos os analistas e alcançou 0,87%, sob o impacto de reajustes nos preços da comida, do gás, da gasolina, do álcool, do diesel e na tarifa de energia elétrica. Em metade das localidades pesquisadas pelo IBGE, o IPCA acumula alta acima de 10% — dois dígitos, portanto. Também a cesta de consumo das famílias mais pobres, com renda mensal de até cinco salários mínimos, ficou 10,42% mais cara desde setembro do ano passado. Não é coincidência que tudo isso tenha ocorrido no período em que a crise política, por responsabilidade integral do presidente da República, se agravou a ponto de eclipsar todas as outras dificuldades que o Brasil enfrenta. E não são poucas.

Foi em agosto que os ataques de Jair Bolsonaro a ministros do Supremo Tribunal Federal e ao sistema eleitoral atingiram níveis inaceitáveis. Por intensos, levaram à reação em onda: do Judiciário, de empresários, acadêmicos, sociedade civil por meio de notas em defesa da democracia; do mercado financeiro na forma de deterioração aguda dos ativos — ações despencaram, juros e dólar dispararam. Tudo isso, num país com desemprego, desalento e informalidade recordes; inflação galopante; economia enfraquecida; crise hídrica e escassez de energia; quase 600 mil mortos por Covid-19; 19 milhões de famintos.

Nesse ambiente dramático, o mandatário dobrou a aposta na escalada autoritária. Convocou e compareceu a um par de atos de motivação golpista no aniversário da Independência. Sob aplausos de apoiadores igualmente radicalizados, anunciou desobediência a decisão judicial, num flagrante crime de responsabilidade, como apontou o presidente do STF, ministro Luiz Fux, em firme discurso na quarta-feira 8. Acabou inoculado com o veneno que tentara aplicar na fragilizada democracia brasileira.

Em 2018, pré-candidato à Presidência, o então deputado Jair Bolsonaro posou de aliado da greve de caminhoneiros, que fez despencar o PIB e alavancar a inflação do segundo trimestre. A categoria parou e obstruiu as artérias por onde circula a produção brasileira. Rodovias concentram perto de dois terços do transporte de cargas. Neste 2021 do menor volume de chuvas em 91 anos, hidrovias foram paralisadas ou sua capacidade foi reduzida pela falta de água nos rios. A demanda por caminhões aumentou, e o presidente, com a cumplicidade de empresários, atraiu parte da categoria para seu plano de escalada autoritária.

Em dois dias, caminhoneiros obstruíram trechos de estradas em 16 estados, que concentram a produção industrial e agropecuária nacional. No lugar da agenda de três anos atrás — queda no preço do diesel (alta de 28% de janeiro a agosto deste ano) e dos pedágios, aumento no frete —, pediam deposição de ministros do STF, liberdade para gente presa por ataques às instituições e até estado de sítio. A pauta subjetiva e irrealizável obrigou o presidente a pedir que os aliados recuassem.

Bolsonaro, em inédita serenidade, alertou sobre o risco de aumento da inflação e de agravamento da crise das famílias mais pobres. Pode ter sido a primeira argumentação verdadeira que proferiu desde a chegada ao Planalto. Desde o início da pandemia, a renda média dos brasileiros caiu 9,4%, calculou a FGV Social; na metade mais pobre despencou 21,5%. Em junho de 2018, mês seguinte à greve dos caminhoneiros, o IPCA subiu 1,26%; os preços no grupo alimentação e bebidas, 2,03%. No mês passado, a comida para consumo doméstico encareceu 1,63%, segundo o IBGE. Foi a maior alta deste ano — com caminhoneiros circulando normalmente.

Um movimento prolongado da categoria teria potencial para arrasar uma economia já devastada. As projeções para os juros básicos na virada do ano já chegam a 8%; para o IPCA, a 7,7%, maior nível desde 2015 e mais que o dobro do centro da meta de inflação (3,75%). Analistas já trabalham com PIB inferior a 2% no ano que vem. A safra agrícola, que começou 2021 com previsão de novo recorde, deverá cair 1% sobre o ano anterior, efeito da seca e das geadas. Nem o mais promissor dos países nem o mais golpista dos presidentes resistem a tanta destruição. Bolsonaro apelou aos caminhoneiros e, com ajuda do antecessor, Michel Temer, acenou às instituições. Resta saber por quanto tempo.

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