Publicidade, falsos ideais e os muros que precisamos derrubar

No palco iluminado da publicidade, as marcas não podem mais se eximir da discussão global da diversidade

por Claudia Penteado no ÉpocaNegócios

TIRANDO UM OU OUTRO DIVERSITY WASHING, O QUE SE VÊ HOJE DE FATO É UM LENTO DESPERTAR (FOTO- NAPPY)

Há quatro anos, a pesquisa Todxs, da agência Heads, vem analisando a equidade de gênero e raça na publicidade brasileira. Já foram realizadas seis edições do estudo, observando mais de 17 mil filmes exibidos na mídia, e cinco mil posts no Facebook.

A sétima edição acaba de ser concluída, e radiografou um total de 2.148 peças, de 31 segmentos de mercado e 183 marcas, além de 733 posts no Facebook. A conclusão é que alguma coisa mudou. De apenas 4% nas primeiras edições do estudo, mulheres negras passaram a aparecer em 25% das peças publicitárias. O volume de protagonistas brancas caiu de 94% em 2014 para 64%. Ainda há menos homens negros, cerca de 13%. Mas vale lembrar que em 2014 apenas 1% das peças publicitárias tinham atores negros em destaque. Já no Facebook, a presença das mulheres brancas ainda é de 67%, mas a presença de mulheres negras cresceu de 12% para 23%. As estatísticas para homens negros mudaram pouco: eles aparecem em apenas 12% dos posts nas redes sociais, e há quatro anos o percentual era de 11%.

A pesquisa sai pouco tempo depois da bola fora da Perdigão com seu filme de Natal, em que uma família branca bem estereotipada, com seu patriarca rico doa para uma família pobre e negra um peru de Natal como se fosse 1 milhão de dólares. Anunciante e agência (DM9) foram duramente criticados, divulgaram um comunicado conjunto — em que pediam desculpas se ofenderem alguém e declarando acreditarem na generosidade como forma de união — e colocaram no ar um novo comercial, que explora o tema generosidade enquanto uma família menos estereotipada comemora o Natal. Os filmes da família Oliveira (rica) e Silva (pobre) continuam disponíveis no canal da marca no YouTube, embora tenham sido retirados das demais mídias.

Tirando um ou outro “diversity washing”, o que se vê hoje de fato é um lento despertar, e possivelmente tão lento porque continuam sentados nas cadeiras — tanto de planejamento/criação das agências, quanto na direção de marketing das empresas anunciantes — pessoas brancas com dificuldades de fugir ao clichê de que bonito mesmo é o louro de olhos claros.

Ouvi recentemente o relato de um dono de agência contando, envergonhado, como um cliente seu questionou uma campanha inteira pelo excesso de estereótipos: a menina lourinha considerada ideal de beleza, dentre outros elementos estereotipados que em outros tempos eram comuns, mas hoje chamam a atenção.

Lembro de publicitários afirmando que “as pessoas não querem ver a si próprias na publicidade. Querem ver algo ideal, querem sonhar, querem desejar”. Hoje sabemos que essa visão é bullshit, da mesma forma que é bullshit que a propaganda seria uma espécie de “espelho” da sociedade. A propaganda tem responsabilidade com as pessoas, com a sociedade — responsabilidade essa que foi sendo assumida aos poucos pelas empresas, outrora autistas em um ambiente em que não se questionava quase nada.

Caíram, para sempre, os muros que separavam a publicidade da vida real, e o estranhamento ocorre justamente quando se detecta uma desconexão e a insinuação de dois mundos distintos. Embora realidades e cenários de fato mudem em um ritmo mais lento do que gostaríamos, na publicidade tudo é possível, e ela pode ajudar a empurrar para frente ideias, derrubar mitos, estereotipos, combater injustiças.

No palco iluminado da publicidade, as marcas definitivamente não podem mais se eximir da discussão global da diversidade, fingindo que ela não existe.

*Claudia Penteado é jornalista, estuda comunicação, filosofia e literatura, mora no Rio de Janeiro e acredita em capitalismo consciente. É leonina, mãe da Juliana e prefere ler livros em papel.

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