Fonte: Revista Pernambuco: Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado. No.36, jan 2009, p.8.
Por: Liv Sovik
Reprodução/Facebook
O que até um ano atrás era inimaginável, aconteceu. Nos Estados Unidos, um negro foi eleito presidente. Mas ele é negro, mesmo? Vive expressando sua gratidão filial à mãe e avó brancas. Herdeu sua aparência negra de um pai ausente, um imigrante queniano que permaneceu muito pouco nos Estados Unidos. Ainda criança, teve a experiência extraordinária de viver na Indonésia, com o padrasto muçulmano. No entanto, afirma ser americano por excelência (“em nenhum outro país no planeta minha história seria sequer possível”), até por causa da diversidade que lhe compõe.
Afirma tudo, inclusive a relação nominal com o islã, tabu americano do momento: na posse ele será Barack Hussein Obama. Ele não parece inteiramente negro por isso: pelas múltiplas associações e pelo poder que conquistou e emana.
No entanto, nos Estados Unidos pode ser um negro “diferente”, mas ninguém duvida de sua negritude: nas palavras do vice-presidente eleito Joe Biden, “ele é meio branco e meio negro.
(…) ele é um homem negro porque a sociedade não permite que ele seja outra coisa.”
Ele abraçou sua identidade negra e se arraigou em Chicago, cidade com forte presença demográfica e cultural negra, se integrou à família negra de sua mulher, frequentou uma igreja negra. Imigrante à comunidade negra, o pertencimento de Obama a ela é ratificado pela aparência, o casamento, a paternidade e a atuação política. Mesmo assim, quando concorreu a deputado contra um militante negro histórico, perdeu. Na campanha presidencial, não assumiu as bandeiras tradicionais da militância negra, como a ação afirmativa, mas reconhecia que “quem tem minha aparência” geralmente não teve tantas oportunidades. Depois de eleito, sem comentá-lo, nomeou número abundante de negros a altos cargos de seu governo, em um país em que só uma pessoa em oito é negra.
Mesmo com essa complexidade de imagem e ação, muitos achavam que o racismo derrubaria sua candidatura. Até os últimos dias da campanha, saiam artigos na imprensa sobre os eleitores brancos para quem ele ser negro incomodava. De fato, sua vitória não foi esmagadora, mesmo com o descrédito dos Republicanos, maior do que nunca. A atenção da imprensa à questão de sua identidade racial foi constante e se perguntava, nos primeiros meses de 2008, quando Obama se posicionaria explicitamente a respeito. O momento chegou com a divulgação “viral” e na imprensa do sermão do polêmico pastor Jeremiah Wright, condenando “a América”, por causa da escravidão e do racismo.
Muitos comentaristas apostaram que o escândalo se estenderia, mas Obama respondeu com um discurso que foi bem recebido, em que um dos pontos de destaque era quando falava de sua dor ao saber dos estereótipos racistas de sua avó branca. Para muitos ouvidos brasileiros, o discurso era sobre a mestiçagem como solução para os discursos conflitantes sobre raça, racismo e identidade.
Para muitos ouvidos de brancos acostumados com a polarização racial, Obama pedia que escutassem os negros e que entendessem a sensibilidade e a experiência de um pastor Wright. Para esses ouvidos, Obama fala a partir de uma compreensão complexa e pessoal da história de seu país. A adesão dos negros americanos à candidatura de Obama foi de quase 100 por cento. Sua vitória quebrou um veto ao negro em espaços de poder que, embora esteja longe de universal, hoje, como o foi, 50 ou 60 anos atrás, ainda lança uma sombra sobre a sociedade americana.
Mas Obama não mencionou ser o primeiro negro a se candidatar por um dos principais partidos, nem ao se eleger presidente. Indagado na primeira entrevista televisiva depois da eleição sobre a emoção pública que esse fato gerou, desviou a atenção para a sogra. Disse que imaginava como era para ela, que se tornou adulta sob o regime de segregação racial em Chicago nos anos 50.Relatou que, enquanto assistiam os resultados da eleição, ela tomou sua mão e a apertou, mas não falou nada.
No silêncio e no gesto: assim é que, no quadro cultural dos EUA, Obama registra sua negritude como algo que compartilha com outros negros, mesmo que a maioria sofreu mais os resultados do racismo do que ele.
O silêncio não é completo. Ele encontra força retórica, política e pessoal na tradição cultural negra na qual ele não foi criado, mas se criou. Seus discursos e slogans de campanha ecoam imagens tiradas dos discursos de Martin Luther King:
{xtypo_quote}Change We Can Believe In, Yes We Can, ambas refletem o sonho de redenção da diáspora negra. Obama fala com a multidão, muitas vezes, com a mesma atenção e entonação de um pregador negro, repete refrões na espera da resposta do público.
Depois de sofrer ataques pessoais de Hillary Clinton em um debate em Pennsylvania, Obama disse que assim era a “política de Washington”. Hillary aprendeu a atacar quando ela própria foi atacada, disse e repetiu, e fez gestos de tirar a poeira do ombro, em uma referência ao videoclipe do rapper Jay-Z, “Dirt Off Your Shoulder”. O público veio abaixo. O gesto e o discurso são de superioridade na adversidade, são cool, a quintessência da melhor atitude negra americana diante da sociedade que a agrida.
Como tantos negros americanos, Obama é mestiço, mas, o que não é comum, a mistura é recente. Isso lhe criou conflitos pessoais ao longo da juventude, mas na campanha eleitoral ele aproveitou a ambiguidade da condição de mestiço, criando um discurso múltiplo. Geralmente mantinha silêncio sobre sua negritude, enquanto a mostrou e demonstrou constantemente. Seu discurso múltiplo foi interpretado por alguns comentaristas no Brasil como uma superação da identidade negra como discurso político. Caetano Veloso, em seu show Obra em Progresso, em agosto de 2008. Disse:{xtypo_quote} “Me contaram que outro dia, ele falou para um jornalista brasileiro, ‘eu não pareço brasileiro?'” Depois de alguns devaneios, concluiu: “O fato é que a gente vê que Barack Obama está querendo imitar os brasileiros e muitos brasileiros, imitar os Estados Unidos pré-Barack Obama.”{/xtypo_quote} Caetano está acompanhado por outras figuras, na imprensa, como Ali Kamel, diretor-executivo de O Globo e o colunista Demétrio Magnoli. Festejam o fim das categorias raciais estanques nos Estados Unidos, querem que elas não sejam mais claramente definidas no Brasil. Kamel e Magnoli dizem, até, citando a prêmio Nobel de Literatura Toni Morrison(surpreendentemente, não captam sua ironia), que Bill Clinton teria sido o primeiro presidente negro.
Mas talvez o discurso racial de Obama não seja muito fácil de traduzir para o Brasil, pois ele estava em muito maior tensão com seu contexto do que transparecia. Ele vivia e comunicava o valor de sua negritude no limite do possível. Ao dar o recado de sua identidade racial, sua tática foi a mesma de Cassius Clay/Muhammed Ali: Float like a butterfly, sting like a bee. Em sua campanha eleitoral, Obama flutuou como borboleta. Mas não voou por cima do racismo, deu uma ferroada na inferiorização do negro.
1 Ryan Lizza. “Biden’s Brief”. The New Yorker. 20/10/08, p.51.
Liv Sovik: professora de Comunicaçao da UFRJ e autora de Aqui ninguém é branco: identidades raciais e música popular (no prelo).