Ela mantém coletivo “Baphos Periféricos”, que coordena atividades culturais na região com foco no movimento artístico e empreendedor.
Texto: Lola Ferreira Imagens: Valda Nogueira no HuffPost Brasil
Com uma agenda que não para nunca, Quitta Pinheiro, de 22 anos, respira arte. Produtora cultural por vocação e fotógrafa de formação, ela vive seus dias em prol de democratizar a cultura na região da Baixada Fluminense, e fortalecer cada vez mais o movimento artístico LGBT na região. Criadora da Baphos Periféricos, Quitta é responsável junto com o grupo por organizar feiras, apresentações e festivais culturais com foco na população LGBT. Para ela, investir na difusão desse segmento cultural não se restringe a quem é lésbica, gay, bissexual ou travesti, mas é um movimento de avanço de toda a sociedade.
É para além do movimento artístico, é um movimento da sociedade manter mais as pessoas aqui.
O primeiro contato próprio de Quitta com a arte foi na Escola de Fotógrafos do Observatório de Favelas, no Complexo da Maré. Ali, ela conta, começou a ter um outro olhar, mais apurado, sobre o mundo e a própria cidade em que transitava. E foi durante aquele ano de curso, entre lentes e tripés, que ela iniciou sua vida na área artística. Por muitos anos, a produtora ficou no lugar de fotógrafa. Fotografou o Cineclube Buraco do Getúlio, que funcionou na sua cidade natal, Nova Iguaçu, por 12 anos, e lidar regularmente com todas as manifestações culturais que estavam ali presentes fez com que Quitta percebesse que aquilo era o que ela queria fazer. A pluralidade de manifestações do cineclube, destaca a fotógrafa, ia desde apresentações de bandas até performances circenses, sem restrição.
O contato mais próximo com a arte fez com que ela fizesse a sua primeira performance em um sarau, e foi ali que descobriu-se também artista. “Eu performei nesse lugar da transgressão, sendo que eu nem tinha começado minha transição ainda naquela época. Essa primeira performance tem um peso, porque foi a única que eu fiz aqui em Nova Iguaçu, e falava muito dessa explosão de se encontrar e do autoconhecimento. Minhas performances falam sobre mim, e o fato de eu conseguir falar sobre mim foi se desenvolvendo a partir daí”, relembra Quitta.
Minhas performances falam sobre mim, e o fato de eu conseguir falar sobre mim foi se desenvolvendo a partir daí.
A veia artística da família não se restringe somente a ela. Sua irmã, Luana Pinheiro, é ex-coordenadora da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu, e foi em uma das oficinas de produção de festivais, organizada pela escola, que a Baphos Periféricos foi gestada. “Era uma atividade para pensar um projeto de festival ou mostra, e meu grupo sentiu uma inquietação de debater sobre gênero e sexualidade, principalmente na Baixada Fluminense”, conta a fotógrafa.
Quitta contextualiza que a inquietação do seu grupo, formado por corpos plurais, como negros, gays, gordos e ela, travesti — termo que reivindica — tinha uma forte relação com o movimento pendular de saída da população LGBT da Baixada Fluminense que iria consumir cultura em outro lugar.
“A gente não queria só que os LGBT da região saíssem em direção à capital, mas que ficassem aqui, e também que gente de fora viesse para cá, conhecendo o que é oriundo daqui. Isso fala um pouco também sobre o mercado de trabalho, porque as cidades da Baixada Fluminense são cidades-dormitórios. É para além do movimento artístico, é um movimento da sociedade manter mais as pessoas aqui”, analisa.
A gente não queria só que os LGBT da região saíssem em direção à capital, mas que ficassem aqui.
Além do caráter artístico, os eventos que têm o dedo de Quitta e da Baphos não deixam de lado a necessidade de falar sobre empreendedorismo LGBT. A Baphos Periféricos, então, surge dessa atividade, primeiramente como a ideia de um festival de cinema, mas quando vai às ruas já organiza um evento multimídia. “Tinha rodas de conversa, oficinas. A gente ocupava a praça para colocar o movimento artístico ali. A partir disso, conseguimos abordar várias questões”, relembra a produtora, que afirma ter sido esse trabalho final o estalo necessário para ela perceber que também gostava de todas as etapas da produção artística, do pré ao pós.
“É um evento multimídia com total representatividade, tanto artística quanto empreendedora: no meio da praça tem o palco, e em volta dela a gente promove uma feira para empreendedores LGBT exporem seus produtos. É para que todos vejam que além de artista, a gente também está empreendendo em muitas áreas. A importância não é só de ter para o movimento artístico, mas para mostrar o quanto as pessoas trabalham”, afirma.
Ser a referência dentro de um movimento pode ser cansativo algumas vezes, reconhece Quitta, mas ela contextualiza que a sua trajetória pessoal foi o principal motivo de fortalecimento de sua identidade. É por isto, principalmente, que ela “dá a cara à tapa”.
É para que todos vejam que além de artista, a gente também está empreendendo em muitas áreas.
“Eu tenho uma família que nunca teve questões com a minha identidade, e isso é bem raro. Então quando isso acontece, eu tenho ali uma base que muito LGBT não tem. Se eu tenho esse privilégio, essa conquista, há essa importância de estar na linha de frente. Se eu tenho quem me dá colo, por que eu não colocaria minha cara à tapa pela galera que não tem o que eu tenho? Não me sinto soberba em reconhecer que sou uma referência, porque uma mão puxa a outra”, analisa a fotógrafa. E completa: “Não sou só eu que estou ali”, contextualizando com todas as pessoas LGBT que podem mirar-se nela como exemplo, e que também sentem-se representadas.
Quitta também é comunicadora do Galpão Bela Maré, do Observatório de Favelas, a instituição em que ela descobriu ser da área das artes. Ali seu trabalho consiste, também, em lidar com a arte. Claro. “Comecei a ter contato com o cineclube há 12 anos, então há 10 anos eu convivo com arte. Eu não sou acadêmica, mas a percepção da arte está tão dentro da minha vida que eu não tenho outra visão para falar sobre. Não me vejo fora da arte”, diz ela, que até vê com a estranheza a possibilidade.
Se a arte não estivesse no meio de tudo isso, a gente estaria muitos passos atrás.
Para Quitta, a arte é um importante meio de avanço da sociedade, principalmente em relação aos direitos LGBT: “Se a arte não estivesse no meio de tudo isso, a gente estaria muitos passos atrás. A arte é muito poderosa e muito disseminadora. Quando você vê, acontece coisas que você menos esperava”, define.
Alguns podem achar que a pouca idade de Quitta deveria ser um limitador da sua atuação, mas pelo contrário: seu diálogo com seus pares é fundamental para o fortalecimento do movimento cultural ao qual se dedica. Diante disso tudo, ela define seu sentimento simplesmente em “gratidão”: “Que bom que ao mesmo tempo em que estou ainda me encontrando, também posso fazer por outras pessoas”, finaliza.