No Fórum Social Mundial Temático realizado na semana passada em Porto Alegre, a ativista sul-africana Wilhelmina Trout, representante da Marcha Mundial de Mulheres na África do Sul, deu um impressionante depoimento sobre a sua vida e trajetória de militância no seu país. Quando votou pela primeira vez, já era avó. A luta pelos direitos civis foi uma árdua batalha, liderada por Nelson Mandela. Após vinte anos de fim do apartheid, a avaliação que ela faz não é das mais promissoras. A desigualdade econômica entre brancos e negros permanece e, em algumas situações, até se acentua; há um desânimo latente entre vários jovens negros e até já há vários deles que passaram a ser eleitores dos partidos brancos.
A conquista dos direitos civis é um patrimônio coletivo, foi a custa de muito suor e sangue que se chegou a este patamar. Porém, não é suficiente para se pensar em uma verdadeira democracia (aliás, o nome do painel era “Contra o capital, a democracia real”). Segundo Trout, houve um equívoco durante o processo de transição e negociação do fim do apartheid: “nós focamos exclusivamente no direito a voto, no direito civil, e esquecemos dos direitos econômicos; e era uma oportunidade importante para se exigir isto diante da pressão internacional que conseguimos contra o regime de segregação racial”.
Sempre lembro do escritor José Saramago que, em uma palestra no Fórum Social Mundial de 2008, disse que a democracia que vivemos é “sequestrada, condicionada e amputada”. Por quem? Pelos poderes de “facto” – o poder do grande capital globalizado expresso pelas corporações transnacionais, pelo sistema financeiro, pela indústria midiática e do entretenimento e pelo poder bélico.
O capitalismo global se organiza por redes produtivas globais e precisa, para isto, de centros tecnológicos de ponta; de uma ambiência política esvaziada para favorecer a desregulação (daí a crescente despolitização da esfera pública e a transfiguração do cidadão em consumidor) e de grandes áreas para funcionar como “lixeiras” onde se encontram relações predatórias de trabalho, de degradação ambiental e de descarte dos detritos do consumo descartável.
O que está acontecendo na atual conjuntura é que os lugares de ponta do capitalismo global estão experimentando o esvaziamento da ambiência política, a tendência a direitização dos governos com forma de manter “controlados” os lugares da exploração predatória, nos quais crescem os questionamentos ante ao atual modelo de produção.
Este processo não acontece apenas entre países, mas também dentro de nações em que há disparidades deste tipo. No caso do Brasil, as reivindicações dos segmentos sociais subalternizados, por mais simples que sejam, como jovens negros querendo passear nos shoppings, recebem respostas brutalmente violentas daqueles que tem medo da sua condição social deixar de ser privilégio – note que não se trata de perda da condição sócio-econômica, mas sim desta deixar de ser algo de “distinção” social.
É por isto que o racismo como mecanismo ideológico estruturante destas relações aparece de forma cada vez mais explícita e violenta. As tímidas políticas de inclusão social tocadas pelo atual governo já são motivo de violenta reação não só das elites mas também de parte de uma classe média que tem o seu ethos marcado pela perspectiva aristocrática de expressar publicamente a sua distinção, o que a faz ter verdadeira ojeriza a políticas públicas como prioridade ao transporte coletivo, a moradia popular, educação pública de qualidade, ações afirmativas para negros, entre outros.
Assim, falar em democracia transcende os aspectos formais dos direitos civis (embora estes sejam importantes). E também é necessário que se tenha em consideração que o poder de fato está divorciado da esfera pública política.
Fonte: Quilombo