Racismo pouco é bobagem: o desfile de Ronaldo Fraga e a defesa do indefensável

Texto de Jeanne Callegari.

 

 

Das horas em que dá vontade de rasgar o diploma: ler na Marie Claire, uma revista que já publicou tanta coisa bacana e fez história no jornalismo, uma nota parcial e cheia de fatos falsos, apenas pra defender o estilista Ronaldo Fraga. Vamos lá:

1) A nota afirma que os padrões de beleza caucasianos não despertaram “grandes sanhas anti-racismo, contra a discriminação”. “Neste momento, talvez, os defensores dos direitos dos negros tenham cochilado”, diz a nota, em tom debochado e desrespeitoso. Gente. Não sei quem escreveu essa nota, mas a maior representação dos negros na moda, na mídia e em tudo o mais é uma demanda MUITO antiga. Se isso não aparece mais, é porque ninguém dá espaço pra isso. Né? É um INSULTO às pessoas que lutam por representação dos negros HÁ ANOS afirmar que eles “cochilaram”.

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2) A nota usa a habitual desculpa de quem fala ou diz coisas racistas para se justificar. Afinal, o pai de Ronaldo Fraga era negro, foi até jogador de futebol. Essa é a desculpa clássica, gente. Sempre, SEMPRE que alguém diz ou faz algo racista, pode apostar que a pessoa irá se justificar citando alguém que ela conhece que era negro. “Não sou racista, minha empregada é negra!” “Não sou homofóbico, meu cabeleireiro é gay!”. Essa foi inclusive a desculpa usada por Marco Feliciano para se defender de acusações racistas: “Não sou racista, minha mãe é negra”. Sim, gente. Ter um parente negro não te isenta do racismo. Ninguém está isento do racismo, pois a questão é estrutural.

3) Aí a nota apela, ao comprar, sem nenhum senso crítico (e jornalístico), os argumentos de Ronaldo Fraga. “Foi um recurso estético, uma licença poética”, diz Fraga, e a revista assina embaixo. Claro. As blackfaces (quem não sabe o que é, google, gents) também eram uma licença poética, um recurso estético. Exagerar traços e características físicas dos negros não é algo novo, que o trote na UFMG ou Ronaldo Fraga inventaram: é antigo. É esse peso que as palhas de aço carregam. Elas não surgem no vácuo. Vêm na esteira de algo que foi usado para humilhar e estigmatizar os negros por muito tempo. Se os negros nunca tivessem tido seus cabelos associados a bombril ou assolan, isso não seria um problema.

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4) Aí, a revista apela para uma falácia completamente sem pé nem cabeça: “Os detradores de Ronaldo Fraga, provavelmente, não entendem nem de arte e nem de negros. Acusá-lo de racista seria o mesmo que dizer que Tarsila do Amaral é jocosa em seu “Abaporu”, ao retratar o povo brasileiro em linhas modernistas.” Sério, Marie Claire? Primeiro, não é verdade: muitas das pessoas que se manifestaram contra o desfile entendem MUITO de arte e de negros. De um lado, escritores, músicos, artistas. Do outro, pessoas do movimento negro, gente que MILITA NISSO HÁ ANOS. E claro, muita intersecção entre os dois grupos. Não que isso importe; no fundo, o argumento é o que vale. E esse vale. Afinal, os negros e negras que tiveram seus cabelos chamados de “ruim” e “bombril” a vida inteira é que podem dizer se o recurso das palhas de aço foi ofensivo. Pelo que vi por aí, eles não gostaram nada. Pois é.

5) E a Tarsila do Amaral, gente? Sério que vocês tão comparando uma coisa com a outra? Que tal comparar com o Monteiro Lobato, então? O fato de ser arte não impede que seja racista, a gente sabe.

6) “E achar que a defesa dos negros e de seus direitos se dá em uma arena histriônica, em um compêndio de acusações e ofensas desprovidas de ligações com a realidade é no mínimo ingenuidade, senão má-fé.” Nossa. Em uma frase, conseguiu chamar os negros e negras que se sentiram ofendidos de ingênuos, de agirem com má-fé e de fazerem acusações DESPROVIDAS DE LIGAÇÃO COM A REALIDADE. Histéricos, lunáticos. É. Pois tem alguma negra aí na redação, Marie Claire? Pergunte se ela já teve seu cabelo associado a bombril. Vamos ver se isso tem ou não ligação com a realidade.

7) E a cereja do bolo: “Será que esses que se levantam para apontar o dedo a Ronaldo já se mobilizaram para ajudar a sociedade a garantir os direitos dos negros? É irônico que não tenham produzido contra o deputado Marcos Feliciano (atual presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara), abertamente racista, a mesma enxurrada cibernética de críticas que destinaram ao estilista brasileiro.” HELLO. Gente! Talvez o pessoal da revista estivesse mesmo MUITO ocupado vendo desfiles esses dias, porque protestar contra o Feliciano é SÓ o que as pessoas têm feito, há semanas, desde que ele assumiu a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. Em São Paulo, as pessoas foram para as ruas duas vezes já, assim como em diversas cidades do país. Em Brasília, militantes do movimento negro estão lado a lado com o pessoal LGBT nas reuniões da comissão, protestando. Fora as milhares de manifestações online, em blogs, redes sociais e petições. Não precisa nem entrar em um site de notícias pra ver isso, gente. Tá em toda parte, até eu já tou cansada de olhar pra cara dele. Ou seja: o pessoal da Marie Claire só presta atenção quando o assunto tem a ver com moda. Se saiu desse universo, não sabem de nada. Esperava mais da revista, de verdade. Já quis até trabalhar lá. Mas trabalhar em um veículo racista acho que não rola. Que pena.

8) Tudo isso pra quê, né? O Ronaldo Fraga podia ter pedido desculpas. Era só isso, sabe. Admitir que não teve intenção de ofender, mas que, como ofendeu, sente muito mesmo. Se o pai dele é negro, ele devia saber como essas coisas doem. E quando a gente machuca alguém, mesmo sem querer, a gente pede desculpa, sabe. Imediatamente. Pisei no seu pé? Desculpa. Não foi por querer, mas desculpa. Agora, dizer que a dor que você sente por eu ter pisado no seu pé é ingenuidade, má-fé ou algo que não tem ligação com a realidade, é ofender mais. É cravar o salto agulha até o fundo. Se o Ronaldo Fraga quer insistir em ficar na defensiva e culpar o mítico “politicamente correto” em vez de ter responsabilidade (accountability, gente!), OK. A revista não precisa fazer isso. O jornalismo tem que ficar um pouquinho mais distante das coisas que cobre, sabe. Não precisa fingir que é isento, a gente sabe que isso não existe. Mas um pouquinho de distância faz bem.

Enfim, desculpem o desabafo. Gosto demais dessa profissão, sabe. Não quero ter que rasgar a porcaria do diploma de jornalista.

 

 

 

Fonte: Blogueiras Feministas  

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