Começamos o ano de 2023 recuperando a esperança em avanços na área de direitos humanos. Depois de quatro anos de conservadorismo opressor, negacionismo científico, crescimento do movimento antivacina e terraplanismo, podemos suspirar aliviados com um novo governo que celebra o amor, a ciência e o SUS.
Semeamos o vento da mudança. Queremos que a tempestade progressista lave nosso país desses quatro anos de obscurantismo e que venham dias iluminados.
Ainda tivemos “boiadas” do governo anterior como a tese do marco temporal para terras indígenas, a nova lei orgânica da polícia militar, a desintegração das políticas de combate à violência institucional, evidenciada pela Operação Escudo e a recusa do uso de câmeras corporais por alguns estados.
O país enfrentou este ano um alarmante quadro de violência policial, especialmente com altos índices de mortes causadas por policiais em São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia.
O ano de 2023 também foi marcado pelo assassinato da yalorixá Bernadete Pacífico, liderança do Quilombo Pitanga dos Palmares (BA) e da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), e pela morte da liderança Tymbektodem Arara. Ambos, figuras importantes na luta pelos direitos dos povos tradicionais e originários.
E vamos a uma breve retrospectiva
Duas décadas após o surgimento da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), o Decreto nº 11.346, de 1º de janeiro de 2023 aprova a criação do Ministério da Igualdade Racial (MIR), órgão da administração pública federal direta que tem como competência elaborar e gerir as políticas e diretrizes destinadas à promoção da igualdade racial e étnica no Brasil. O Movimento Negro comemorou muito essa conquista que estava em muito atrasada.
Já nos primeiros 100 dias de MIR tivemos um pacote de medidas abrangendo o novo Programa Aquilomba Brasil, a reserva de no mínimo 30% das vagas dos cargos e funções comissionadas no âmbito da administração pública federal para pessoas negras, a titulação de terras quilombolas, a criação de grupos de trabalho para elaboração de diretrizes do Novo Programa Nacional de Ações Afirmativas, do Plano Juventude Negra Viva, do Plano de Gestão do Sítio Arqueológico Cais do Valongo, e de Enfrentamento ao Racismo Religioso. Um grande avanço para o país.
No dia 10 de janeiro, em seu primeiro dia de governo, uma das medidas de destaque do presidente Lula foi a recuperação do Fundo Amazônia e o Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA), o mais antigo fundo ambiental da América Latina. Além disso, Lula também anunciou a proibição da mineração artesanal em terras indígenas e visitou as terras indígenas yanomami, um dia depois de o Ministério da Saúde declarar emergência de saúde pública por falta de assistência sanitária às populações do local.
Além da recuperação de programas de financiamento ao meio ambiente, Lula também extinguiu políticas que flexibilizavam a posse de armas. Dados do último Anuário de Segurança do Fórum Brasileiro de Segurança Pública registraram que, sob o governo Bolsonaro, houve um aumento de 473% no número de pessoas com licenças para armas de fogo. Sabemos que boa parte do armamento do cidadão de bem é uma estratégia racista de eugenia contra a população negra e pobre, além dos desvios para facções criminosas.
Em janeiro, o Ministério da Saúde revogou seis portarias assinadas pelo governo Jair Bolsonaro que, de acordo com a pasta, contrariavam diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). Entre as portarias revogadas, está a que previa (Portaria nº 2.561) a necessidade da equipe médica notificar a autoridade policial em caso de aborto por estupro. Sobre este tema, em setembro, antes de se aposentar, a ministra Rosa Weber incluiu na pauta de julgamento virtual a ação que pede descriminalização do aborto no Brasil. Weber votou pela descriminalização e seu voto se mantém válido mesmo após a aposentadoria. O atual presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, afirmou, no entanto, que não tem planos de retomar o julgamento.
Em fevereiro, o STF voltou a analisar se agentes das Forças Armadas que cometem crimes contra civis em atividades de segurança pública devem ser julgados pela Justiça Comum. A ação, no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5032, apresentada, em 2013, pela Procuradoria Geral da República (PGR), pede que a Suprema Corte considere inconstitucionais trechos de uma legislação (Lei Complementar nº 136/2010) que aumenta a competência da Justiça Militar, permitindo que os próprios militares julguem colegas causadores de crimes contra a vida de civis.
No início do ano, o resgate de 207 homens em situação análoga à escravidão, em uma vinícola gaúcha lançou luz sobre o racismo e a precarização do trabalho no Brasil. Uma realidade que precisamos combater.
O Brasil rejeitou recomendações realizadas por outros estados membros da ONU no 4º ciclo da Revisão Periódica Universal, em sessão realizada no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em março. As recomendações limitavam a definição de família e discriminavam pessoas LGBTQIA+. “As políticas públicas nacionais do Brasil são dirigidas a todas as formas de família, sem qualquer tipo de discriminação”, explicou o embaixador Tovar da Silva Nunes.
Em março, o STF iniciou o julgamento em plenário de um habeas corpus com dimensão coletiva sobre abordagens policiais feitas sem critérios objetivos ou baseadas apenas na cor da pele, o chamado perfilamento racial. Não podemos continuar sendo alvo das balas perdidas da polícia e sendo da cor que atiça o “faro” para abordagem policial.
Em maio, entidades da sociedade civil entregaram uma carta à Delegação da União Europeia (UE) no Brasil, em resposta a um novo incidente de racismo contra o jogador Vinícius Júnior, do Real Madrid, da Espanha — nação membro da UE. Mais de 160 organizações instaram a adoção de medidas para combater o racismo não apenas no contexto do futebol, mas em toda a sociedade, com foco especial nos países do bloco.
Em agosto, o país foi surpreendido com o brutal assassinato da yalorixá Bernadete Pacífico, liderança do Quilombo Pitanga dos Palmares (BA) e da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq). A morte da liderança religiosa aponta, tanto para uma constante de violência contra mulheres negras e lideranças quilombolas, como para o racismo religioso, reflexo do racismo estrutural. Outra morte que chocou o Brasil foi a da liderança Tymbektodem Arara, em outubro. O professor, estudioso da língua Arara, era presidente da associação Kowit, da Terra Indígena Cachoeira Seca, no Pará.
Em agosto, aconteceu em Belém, no Pará, a Cúpula da Amazônia, evento que precedeu a COP28. Na ocasião, o presidente Lula deu uma prévia do tom adotado pelo Brasil e outros países detentores de florestas tropicais nas negociações climáticas. “Nós vamos para a COP28 com o objetivo de dizer ao mundo rico que se quiserem preservar efetivamente o que existe de floresta é preciso colocar dinheiro não apenas para cuidar da copa da floresta, mas para cuidar do povo que mora lá embaixo”, disse o mandatário.
O ano de 2023 marcou a decisão histórica do STF de derrubar a tese do “marco temporal”. Em setembro, nove dos 11 ministros consideraram a tese inconstitucional. Porém o Congresso Nacional, na contramão do STF, aprovou o tema dias depois. O Marco Temporal estabelece que apenas as terras ocupadas por povos indígenas até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, podem ser demarcadas. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vetou esse dispositivo, mas o Congresso derrubou o veto neste mês. Indígenas e partidos políticos pedem que STF derrube lei do marco temporal. Essa luta continuará em 2024.
Em setembro, por maioria, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou um ato normativo para a implementação de um sistema de alternância de gênero no preenchimento de vagas em tribunais de segunda instância da Justiça brasileira. Os tribunais passam a ter de abrir editais alternando a criação de listas mistas e exclusivas até que seja atingida a paridade entre homens e mulheres.
Depois de pouco mais de 10 anos, em novembro deste ano, a Lei de Cotas foi revisada e recebeu a sanção do presidente Lula. As universidades federais deverão ampliar as políticas de ação afirmativa para a pós-graduação. A revisão estabelece ainda que, a cada 10 anos, os ministérios responsáveis deverão reavaliar o programa de cotas.
Vale relembrar a indicação de Edilene Lôbo e Vera Lúcia Santana Araújo como Ministras Substitutas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Nossa campanha, do Mulheres Negras Decidem – MND e Juristas Negras, para uma mulher negra para Ministra do STF segue firme e não iremos parar na defesa da representatividade negra em todos os lugares.
E para fechar bem o ano de 2023, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei 14.759/23, que torna feriado nacional o dia 20 de novembro, Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. A data remete ao dia da morte de Zumbi, o líder do Quilombo dos Palmares, e já era feriado em seis estados e cerca de 1,2 mil cidades.
Em 2024 seguiremos na luta contra o racismo estrutural, contra o patriarcado, contra a LGBTQIAPN+fobia, contra o racismo religioso, enfim, contra todas as formas de opressão. Além disso nos manteremos firmes na defesa dos direitos humanos, da promoção da igualdade, pela justiça social e pelo bem viver.
Que venha 2024, e como disse Sueli Carneiro “O pessoal da orientação sexual não vai retroceder em suas lutas, as mulheres não vão recuar nas suas agendas; nós não vamos voltar para a senzala. E isso está colocado. Vai ter luta!”