Lilián Celiberti três décadas depois

Passaram-se quase trinta e quatro anos do momento em que, na rodoviária de Porto Alegre, a polícia brasileira prendeu a uruguaia Lilián Celiberti. Depois daquele dia, a então militante de oposição à ditadura do Uruguai (1973-1985) foi torturada, presenciou a prisão dos filhos e foi separada deles.

Por Daniella Cambaúva e Waldemar José

Levada para Montevidéu, foi condenada a cinco anos de prisão e conseguiu sobreviver. Para quem espera dela um relato carregado de comoção, com voz embargada e revanchista, Lilián se mostra uma mulher serena, obstinada e, sobretudo, consciente de sua tarefa política.

Em entrevista concedida, ela conta que hoje trabalha na Articulação de Organizações Feministas do Mercosul e se descreve como uma “militante dos direitos das mulheres, dos afrodescendentes, dos direitos humanos”.

E é nessa luta pelos direitos humanos que seu passado tem espaço em sua vida: Lilián é uma das únicas provas vivas da existência da Operação Condor, uma manobra clandestina planejada e coordenada pelas ditaduras sul-americanas para capturar aqueles que pudessem representar alguma ameaça aos regimes. Ou, como define ela, é a “expressão planejada de um fundamentalismo genocida que foi parte da doutrina que animou exércitos latino-americanos nas décadas de 60 e 70”.

Enquanto testemunha, já deu diversos depoimentos relatando seu sequestro e já precisou reconhecer pessoalmente seus torturadores – uma tarefa que realizou “sem nenhum ódio singular”. “Simplesmente pude olhar em sua cara e dizer: ‘Sim, é ele'”, contou.

Para ela, enfrentar passado “é como um dever cidadão”: “Não tenho medo, não tenho ódio. Vejo hoje com uma certa distância pessoal. Claro, tenho minhas dores basicamente em relação ao que meus filhos suportaram nessa experiência tão traumática”.

***

Quando chegou ao Brasil, em 1976, Lilián não imaginava que se tornaria, junto de seus filhos, a primeira testemunha daquela operação. Ela e seu colega Universindo Rodriguez Díaz trabalhavam em uma campanha para tentar localizar uruguaios desaparecidos. “Pegávamos seus depoimentos, sistematizávamos e apresentávamos para divulgar porque não se tinha tanta consciência do desaparecimento forçado como método de repressão”, disse.

O que levou à sua prisão, em 1978, foi a captura, em Montevidéu, de uruguaios enviados clandestinamente para o Brasil com objetivo de identificá-la. Depois de presa, com um capuz na cabeça, ficou em um lugar desconhecido, onde foi torturada “com eletricidades no corpo e com água”. Até que, em sua bolsa, os policiais encontraram seu endereço – um prédio da rua Botafogo, número 621, também em Porto Alegre, onde estavam seus filhos e Universindo. “Eu tinha mais medo porque sabia o destino dos desaparecidos. Tínhamos trabalhado desde 76 com militantes de esquerda e sabíamos que o desaparecimento significava a morte. E eu queria evitar que meus filhos desaparecessem”.

Lilián conta que, para ela, a única salvação era tentar ficar em Porto Alegre e denunciar o sequestro. Isso porque, “no Brasil, havia situação política diferente do Uruguai. No Uruguai, havia um terror absoluto. Nenhuma palavra poderia chegar ao nível público”. A estratégia para enganar os militares era oferecer seu apartamento como isca para atrair companheiros na clandestinidade. Como já estava havia cinco dias longe dos lugares que habitualmente frequentava, ela contou com a possibilidade de seus amigos perceberem que havia algo errado. “Era uma coisa muito perigosa porque meus companheiros poderiam pensar que eu estava colaborando com os miliares”, disse.

Seu plano finalmente prosperou quando um de seus colegas telefonou para o jornalista Luiz Cláudio Cunha, então chefe da sucursal da revista Veja em Porto Alegre, e denunciou que dois uruguaios estavam detidos no endereço da rua Botafogo. Com isso, Luiz Cláudio e o fotógrafo João Baptista Scalco foram ao apartamento e comprovaram o que se denunciava no telefonema anônimo.

Para Lilián, é certo que a presença dos jornalistas em seu apartamento salvou sua vida, principalmente porque a visita dos dois rendeu uma série de reportagens publicadas na revista Veja e deu visibilidade para o caso. “Se desaparecêssemos, o Brasil ficaria muito comprometido, porque dois jornalistas já tinham nos visto. Se nos matassem, deixaríamos uma pista”.

Nos dias em que ficou presa em sua própria casa, Lilián não sofreu tortura física. “Só estava eu. Universindo e meus filhos já estavam no Uruguai. A tortura era não ter meus filhos. Tortura maior não conheço. Não me tocaram. Primeiro, porque pensaram que eu ia entregar gente. Depois, porque tinham a maior carta na manga contra mim: os meus filhos”.

Na época, Camilo tinha sete anos e Francesca, três. Com a mãe na prisão durante os cinco anos que se sucederam ao sequestro, foram criados pelos avós maternos, Lilia e Homero.

Ao contrário do que possa se pensar por conta de traduções incautas da palavra “pareja”, ela e Universindo nunca foram casados, mas foram sempre companheiros de militância. Segundo Lilián, ele, historiador e pesquisador da Biblioteca Nacional do Uruguai, esteve doente, mas já está se recuperando. “Nós dois temos sido muito amigos e unidos para sempre por um episódio que nos fez viver as mesmas coisas”.

***

Em fevereiro de 2012, a Justiça uruguaia aceitou reabrir o caso do sequestro dos uruguaios no Brasil, arquivado pela ditadura daquele país, e Lilián já formalizou sua denúncia, aceita pela juíza Mariana Motta. Essa mesma juíza, em fevereiro de 2011, condenou Bordaberry a 30 anos de prisão por liderar o golpe de 1973 e por sua responsabilidade pelos desaparecidos naquele período. O ex-ditador cumpriu três meses na prisão e foi transferido para casa por razões de saúde. Morreu dois meses depois.

Quando questionada sobre a possibilidade de seus torturadores serem punidos, Lilián responde otimista. “No Uruguai, há vários casos abertos. Nosso caso também está aberto e a justiça também está investigando esses militares que participaram. Estão descobrindo cadáveres de pessoas desaparecidas. Há um trabalho de investigação e também confio que, no Brasil, também haja esse movimento, que é um direito de todos”, afirmou.

Ela acredita, porém, que existe um caminho a ser percorrido não apenas por meio das autoridades – que também têm sua responsabilidade –, mas por toda a sociedade. “Os homens e mulheres deste momento têm que reclamar, que querer saber, buscar a verdade, voltar a esses episódios do passado. A cumplicidade é um sistema muito mais amplo, está no poder político, mas também na sociedade”.

* Daniella Cambaúva e Waldemar José são jornalistas.

Fonte: Carta Maior

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