“Você pode ser um homem na cama, mas fora dela…”: a tragédia da hiperssexualização do homem negro na novela babilônia

Conheci o trabalho de Val Perré enquanto ator através do grande espetáculo Ogum: Deus e Homem, da Companhia NATA de Teatro. Desde então, Val Perré mostrou para o público baiano que interpretar o Senhor das guerras e do ferro, Aquele que abre caminhos, degola cabeças e navega em rios de sangue dos inimigos, não é para qualquer um. Apesar de toda crítica da imprensa na época, sempre acreditei no trabalho e talento de Val e comecei a acompanhá-lo em sua trajetória, que atualmente se encontra situada na Rede Globo. Porém, sempre me peguei em uma espécie de jogo de percepções quando Val Perré aparecia de maneira muito insuficiente em alguma novela, série ou filme, como a maioria das atrizes e atores negras (os) que conseguem dificilmente se inserir na televisão brasileira. Era o capanga Firmino em Saramandaia. Era o chofer José Maria em O Rebu. Era o segurança em Tim Maia – O Filme. Para quem interpretou Ogum, esses personagens, mesmo sendo muito importantes para o currículo profissional do ator Val Perré, não comportam de maneira plena seu grande talento. É ainda a grande sina de uma dramaturgia racista e estigmatizadora para nós negras e negros artistas ou não, aquela ladainha da “representatividade” que nós sabemos até demais.

por Daniel Dos Santos via Guest Post para o Portal Geledés

Há alguns dias fui impactado com a imagem de Val Perré estampada nas chamadas da Rede Globo para a estreia da novela Babilônia, que aconteceu nesta última segunda, 16. A insatisfação de antemão tinha me tomado, pois Val interpretaria mais uma vez uma categoria de personagem que é direcionado especialmente aos atores negros: papéis marginalizados e subalternizados, que garantem a manutenção do status quo das representações midiáticas estereotipadas sobre os homens negros, presentes no imaginário coletivo do público espectador global. Nesse caso, o de motorista do empresário milionário Evandro, interpretado por Cássio Gabus Mendes, e de sua noiva Beatriz, interpretada por Glória Pires. Mas a problema do personagem Cristóvão é ainda maior. A personagem Beatriz manifesta em seu arquétipo uma ninfomania que é alimentada através de seus fetiches por homens, digamos, “não convencionais”: além de se insinuar em uma das cenas iniciais para um marceneiro, a personagem se envolve sexualmente com o personagem Cristóvão em uma sequência de cenas arrebatadoras de fantasias eróticas e traição. Porém, Cristóvão é negro.

Destaquemos alguns possíveis aspectos positivos do personagem Cristóvão. Cristóvão é um pai de família que possui a responsabilidade de um patriarca de sustentar sua esposa e filhos com seu salário de motorista. Porém, a família de Cristóvão é atormentada por problemas na trama, pois a sua esposa se encontra doente e sua filha, interpretada pela atriz Camila Pitanga, trabalha loucamente para pagar um curso pré-vestibular e alimentar seu sonho de entrar para a universidade. A família negra se mostra mais uma vez como um núcleo tenso e problemático, sempre fugindo do ideal de família elitista não-negra que é proposto pelos outros núcleos principais. Mesmo sendo um patriarca negro configurado nos valores de gênero tradicionais ditados pelo patriarcalismo brasileiro, Cristóvão é um homem dedicado e se preocupa principalmente tanto com o futuro de sua filha, quanto com o estado de saúde da sua esposa, garantindo-lhes sempre sua sobrevivência. Entretanto, Cristóvão se revela de maneira dissimulada no decorrer do capítulo. Corresponde às insinuações da personagem Beatriz; aceita a proposta fetichista de traição de seu casamento; faz sexo de maneira catártica; acaba construindo um relacionamento paralelo e artificial que é destruído junto com sua vida após Beatriz o assassinar diante das chantagens da personagem Inês, interpretada por Adriana Esteves, que a ameaça com vídeos flagrados em uma festa da empresa de seu noivo.

Acredito que a participação de Val Perré em Babilônia acabou de antemão, porém as questões que seu personagem expôs no horário nobre continuam atormentando nós homens negros. A hiperssexualização simbólica do homem negro é o principal artifício utilizado pelos autores da novela para mais uma vez estereotipar as representações masculinas presentes na teledramaturgia. Isso é evidenciado quando o personagem Cristóvão decide manipular sua relação extraconjugal para poder conseguir salvar a esposa, solicitando dinheiro para sua operação cardíaca de emergência. “Você pode ser um homem na cama, mas fora dela…” é a fala que sintetiza a objetificação sexual e desumanização que o personagem Cristóvão sofre na trama. A personagem Beatriz situa Cristóvão em seu lugar de subalterno: negro, motorista, amante, chantageador, oportunista. O destino meteórico e trágico do personagem é decidido por sua própria patroa, que o assassina e o exclui de seus jogos de interesses e desejos.

Diante da cena do assassinato de Cristóvão, uma imagem meio anacrônica surgiu automaticamente em minha cabeça: a personagem Beatriz poderia ser perfeitamente a sinhá e Cristóvão ser seu escravo se a trama possuísse um contexto colonial escravocrata. Uma sinhá que, além de explorar seu escravo com livre arbítrio, propriedade e domínio (principalmente sexual), é a dona de seu destino. Mesmo com o grande silenciamento da história sobre as relações das mulheres da elite colonial brasileira e as populações negras masculinas escravizadas, os restos e resquícios da escravidão no imaginário coletivo brasileiro nos fazem criar projeções e refletir o quanto essas representações podem ser perigosíssimas para o processo de afirmação e (re)empoderamento do homem negro no Brasil, que compreende dentre suas dinâmicas o (auto)reconhecimento e a construção da consciência de si e seus valores étnicorraciais. Refletindo sobre tal questão, o sociólogo britânico Paul Gilroy em sua obra Entre Campos caracteriza esse fenômeno como um “Novo Racismo”, que oferece constantemente através de suas tecnologias (nesse caso, a televisão) “formas duvidosas” de (re)invenção do poder negro masculino em nossos tempos pós-modernos. A hiperssexualização do homem negro é um dos produtos malditos do câmbio simbólico racista da Rede Globo, que continua a vender estereótipos por audiência.

Não é de hoje que alerto sobre isso, amáveis homens negros. Apesar de a hiperssexualização negra (que na novela será mais uma vez exposta através da personagem Regina, interpretada por Camila Pitanga) possa se transformar em uma via de mão dupla de vantagens e desvantagens para nós, como alerta o filósofo Cornel West em Questão de Raça, podemos acabar sendo assassinados simbolicamente como o personagem Cristóvão nessa Babilônia pós-colonial.

 

Daniel Dos Santos (DanDan) é Licenciado em História pela Universidade do Estado da Bahia – Campus V, Membro Fundador e Pesquisador Residente do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Africanos e Afrobrasileiros (AFROUNEB). Atualmente é Mestrando do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia.

 

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