Carta à minha filha que vai nascer: todos os seus dias serão dias de luta

Enviado por / FonteUniversa, por Tia Má

Minha filha, que emoção escrever para você. Carregar você no ventre nutre meu coração de afeto, esperança, mas também de muita insegurança. Afinal, carrego mais uma mulher preta para este mundo, e por isso queria te preparar.

Sei que parece exagero, afinal ainda estou no sexto mês de gestação, mas você já conhece sua mãe. Sou ansiosa e aquele tipo de militante que não descansa nunca, até porque não tenho escolha. Tudo o que eu queria era não precisar lutar todos os dias! Mas o racismo e o machismo não deixam, e me vejo obrigada a estar sempre de punho cerrado, assim como você se mostrou no último ultrassom.

Minha filha, saiba que você é linda! E é importante você ouvir isso de mim, do seu pai, da nossa família, pois muitas vezes o mundo vai fazer você desacreditar da sua beleza. É que em pleno 2020, mesmo com tantas conquistas, o padrão de beleza dominante é eurocêntrico. Não duvide de você!

Você é uma menina preta, preciso te falar muito sobre isso. Pois, mesmo na infância, vai passar por constrangimentos, dores e desafios por conta da cor da sua pele. Mamãe já te disse que vivemos em um país racista?

Provavelmente vão buscar apelidos depreciativos para te atingirem por conta do seu cabelo, da sua cor, seus traços negroides. Durante a minha infância eu ouvia que era “nega do cabelo duro”, “nariz que o boi pisou”, “praga”, “filha de Tião Macalé”, “a escrava”, e mesmo tendo 39 anos, esses “apelidos” ainda ecoam na minha mente.

E pasme, sim, ainda hoje muitas meninas negras passam pelas mesmas coisas. E aqui já destaco as violências que sofremos por conta dos nossos cabelos crespos. Você chega em um momento em que os cachos são exaltados, mas os crespos seguem sendo associados a palha de aço.

A solidão da mulher negra

Você tem uma família que te ama, sim você é muito celebrada por nós, mas saiba que o mundo é cruel, e mulheres como nós, muitas vezes, tem a solidão como a primeira companhia. A solidão da mulher negra pode ser vivenciada nos primeiros anos de vida e nos acompanha até o último dia. A solidão afetiva, a rejeição (das amiguinhas aos boys nas festas – das gatas também).

Mulheres como nós levam mais tempo para iniciar a vida afetiva e sexual porque somos preteridas, escondidas. Somos prioridade apenas na hora do escárnio. Para nos colocar para baixo fazem filas. Sua mãe já grita e usa #representatividadeimporta, mas não se assuste ao ligar a televisão, ir ao cinema ou passar por uma banca de revista e não se ver.

A população negra segue sendo invisibilizada, e olha que já te disse que temos muitos avanços, né? Sua mãe mesmo é alguém da mídia. Mas isso não quer dizer muita coisa. Não sou famosa, sou apenas alguém conhecida, de quem muitas vezes as pessoas não sabem o nome e ficam na dúvida de onde me conhecem… já aconteceu de eu pensar que estava sendo reconhecida por passar na televisão e um senhor branco, depois de tanto me olhar, me perguntou se eu trabalhava no prédio que o filho dele morava. Essa pergunta pode parecer inocente, mas faz parte do meu cotidiano e talvez ainda faça do seu também.

Ainda hoje, associam mulheres negras, como nós, apenas a espaços de subalternidade.

Aí, já aproveito para te fazer outro alerta: pode acontecer de se assustarem com sua inteligência. Sim! Fazem isso o tempo todo com a mamãe. Porque ainda não se acostumaram a olhar para uma mulher preta como produtora de conhecimento.

E olha que estamos na Nasa, foi uma mulher preta baiana que decodificou o genoma do vírus da Covid-19 e, mesmo assim, ainda desconfiam dos nossos saberes intelectual e ancestral. E aqui, quero te pedir que entenda que a universidade é muito importante para mulheres nós, mas ela é excludente e não conta a nossa história direito.

Nos retratam como seres animalizados. Você acredita, filha, que tem gente que defende que o povo preto deveria agradecer por ter sido escravizado? Frequente a academia, mas nunca esqueça o conhecimento de quem veio em nossa frente. Somos um povo sábio, que até hoje utiliza a tecnologia da sobrevivência.

E por falar em sobrevivência, preciso te contar que você tem um irmão mais velho. Um menino lindo, Aladê Koman, 12 anos, preto, usa dreads, e assim que aprender a falar, acredite que, mesmo que ninguém te ensine, em pouco tempo saberá dizer para ele nunca sair sem documentos, não correr quando estiver na rua, evitar sair à noite, e quando for abordado pela polícia que fale pausadamente, mostre suas credenciais e explique que é um estudante.

Isso não garante nada, mas ameniza. Esse é um dos saberes que só a gente que tem a pele preta tem. Você vai aprender. Na verdade seu corpo vai responder. Esse é um daqueles saberes ancestrais que a gente absorve na troca de olhar.

Mas bem filha, esse texto todo parece que sua mãe quer te assustar, né? Não é isso, quero que você chegue preparada, pronta para batalha que é viver sendo mulher preta aqui. E por isso, antes de findar essa carta, me sinto na obrigação de te avisar sobre mais um aspeto crucial para nossa existência.

Mulheres pretas são o alvo preferencial da violência doméstica. Temos que lutar contra o racismo e contra o machismo. Olham para os nossos corpos de forma animalizada e hipersexualizada. Enquanto para seu irmão, aparentemente, é mais seguro ficar dentro de casa, para você a casa pode ser um espaço de terror. É que 78% dos casos de agressão contra uma mulher acontecem dentro de casa, e a violência foi causada por alguém da sua família, na maioria das vezes pelo marido ou namorado.

Filha, você deve estar ficando assustada, né? Mas não fique, somos organizadas. Sua mãe aprendeu desde cedo que LUTO é verbo, que a gente conjuga na primeira pessoa do singular, mas que faz mais sentido quando estamos no coletivo. E por isso, te aviso que mesmo depois de tudo isso, pode vir, pode chegar porque tem muita gente batalhando pelo seu bem-estar, pelo seu bem viver.

Venha Ayanna, a mais bela flor, nome de rainha africana, mas que nascerá nessa selva chamada Brasil. E sim, vai precisar lutar todos os dias, mas saiba que, para pessoas forjadas no afeto e no amor, seguir em frente é a única alternativa. A nossa existência é um ato de RESISTÊNCIA!

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