Apesar de você

Há poucos dias, o Facebook me fez lembrar que três anos atrás eu tomei uma decisão muito séria.

Por Emanuella Santos, do Brasil Post 

Não que em algum momento eu pudesse ter esquecido o que havia acontecido, mas, aproveitando o advento “memorialístico” na rede social e todo o ensejo de votos de felicidade que pairam no fim do ano, pela primeira vez, falei sobre o assunto.

Surpreendentemente recebi uma série de mensagens de amigos que enfrentaram ou enfrentam problemas semelhantes e até então não tiveram oportunidade e coragem de falar sobre, achando que estavam sozinhos.

O assunto? Assédio moral no trabalho.

Somente naquele momento percebi como é um problema que atinge uma parcela maior do que eu supunha, mas que, infelizmente, ainda mantém as pessoas em silêncio.

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Quando cheguei ao Rio de Janeiro, quatro anos atrás, minha primeira experiência profissional foi permeada por um grave assédio moral. Minha coordenadora e eu sofríamos agressões, diretas e indiretas, verbais, psicológicas, diariamente, de uma pessoa. A coordenadora vivia sob a ameaça de que na sua idade seria muito difícil conseguir outro emprego caso não se sujeitasse às condições impostas, e eu sob a ameaça de que morava em apartamento alugado, de que tinha vindo de outro estado e teria minha reputação negativada.

Minha vida pessoal estava sendo muito prejudicada, eu sofria de fibromialgia e gastrite nervosa e não passava um dia sem tomar calmantes. No dia 27 de dezembro de 2012, decidi que isso não poderia mais continuar: deixei todas as minhas coisas no escritório, peguei minha bolsa, saí e nunca mais voltei. Achava que um dia acabaria morrendo. Poucos meses depois, minha coordenadora morreu mesmo. Ela estava tomando uma dose muito alta de calmantes e, ao sair do trabalho, foi atravessar a rua, mas estava muito sedada e acabou atropelada, em frente ao lugar que durante anos só a fez sofrer.

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Quando temos responsabilidades, muitas vezes elas sem querer acabam se tornando moeda de troca para subornar nossa dignidade. E acabamos trocando uma coisa por outra, por medo, por insegurança, por necessidade, por achar que as coisas têm de ser assim mesmo. Não, elas não têm. Estima-se que mais da metade da população trabalhadora brasileira sofra ou já tenha sofrido abusos no ambiente de trabalho, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Leis estão sendo desrespeitadas, pessoas estão morrendo. Devido à falta de apuração, de denúncia, a impunidade é constante e dá respaldo à continuidade dessas práticas.

Vejo muitos amigos queridos que, dentro desse “sistema de trocas”, acabam abrindo mão da própria dignidade, sofrendo, se sujeitando a situações vexatórias e exploratórias, sempre sob ameaças que os fragilizam emocionalmente e os colocam em posição de subjugação. E até mesmo, em um ciclo inconsciente e vicioso, eles acabam reproduzindo em outros o comportamento opressor do qual são tão vítimas.

Ao contrário do que muito se crê, a dignidade anda junto com a responsabilidade, e ambas andam junto com respeito, com amor-próprio, com honestidade. Se as leis deixam de ser cumpridas, é necessário buscar apoio. Procure o Ministério do Trabalho e do Emprego, a Superintendência Regional do Trabalho, converse com um advogado. Não permita que isso continue acontecendo.

Os meses que se sucederam à minha saída foram duros. Mas são nesses momentos em que percebemos que somos competentes, somos saudáveis, temos amigos, temos colegas, temos família; podemos viver dificuldades, mas não passaremos necessidade.

O ano de 2016 se inicia, ocasionando aqueles desejos de renovação, trazendo fôlego para novas empreitadas. Eu gostaria dizer a todos que sofrem de assédio moral que: não, vocês não são obrigados a passar pelo que estão passando. E não se sujeitar não é rebeldia, não é irresponsabilidade, não é errado; trata-se apenas do respeito que vocês merecem, como trabalhadores, como cidadãos.

E vocês não estão sozinhos.

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