Ode ao filho da tortura

Com sua pena afiada e cirúrgica, Darcy Ribeiro foi ao ponto, ao descrever a escravidão no Brasil como uma “máquina de moer carne humana”. Séculos de sevícias não se esquecem facilmente. Índios dizimados e enterrados em todos os recantos do país impedem que se transforme a história do Brasil num conto de fadas de concórdia e fantasia. Sertanejos de Canudos. Trabalhadores de Eldorado do Carajás. Presos do Carandiru.

Ironia do destino nos armou o centenário da Revolta da Chibata. Em 1910, os marinheiros, em plena República, estrugiram contra a sanha dos açoites impingidos como castigo aos trabalhadores do mar, sob o comando da Marinha.

Agora, em 2010, cem anos depois, ministros do Supremo Tribunal Federal transformaram a fundamentação histórica de seus julgados sobre anistia a torturadores da ditadura em história da carochinha, ao fabularem um brasileiro pacífico e cordato, amigo do acordo, a justificar a impunidade. Sejam feitas as ressalvas aos preclaros ministros Carlos Ayres Britto e Enrique Ricardo Lewandowski.

A história tem mesmo o condão de nos pregar peças… Pois em 21 de junho celebram-se os 180 anos de nascimento de Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882). “A quem a história não esqueceu”, mas que vinha recebendo diminuto reconhecimento. Ressaltem-se esforços recentes para trazer à tona os feitos obumbrados de Gama.

Caso do embaixador Rubens Ricupero e do professor Fábio Konder Comparato, por meio de artigos e discursos; ou da pesquisadora Lígia Fonseca Ferreira, com várias obras publicadas; e do historiador e advogado trabalhista Nelson Câmara, que lança agora um livro (“O Advogado dos Escravos”), desvelando os dotes de causídico de Gama, que conseguiu, rábula, a libertação de centenas de escravos, com bem articulados habeas corpus.

Filho da negra liberta Luiza Mahin e de um fidalgo português de identidade desconhecida, o baiano Luiz Gama foi vendido como escravo pelo pai, com dez anos de idade.

Ainda jovem, conquistou a liberdade. Maçom, ativista político, abraçou, com fervor, as causas da abolição e da República, atuando na loja América, com pares como Castro Alves, Rui Barbosa e Joaquim Nabuco. Impedido de estudar direito nas Arcadas, fez-se advogado por si mesmo.

Poeta, jornalista, educador e tribuno, articulou seus afazeres em prol da libertação dos escravos. Seu estilo ferino rendeu-lhe reprimendas várias. Funcionário da polícia paulista, foi exonerado.

Fustigou a magistratura, com picardia, por não respeitarem muitos dos juízes as leis em vigor, que proibiam o tráfico e a própria escravidão, como demonstrou Luiz Gama na Justiça. Poeta engajado, advogado atilado, jornalista cáustico e percuciente, seus escritos e seus exemplos são legados de um tempo que não acabou: a tortura no Brasil continua impune, corroendo delegacias e presídios. Legiões de desesperados minguam prostrados na marginalidade no campo e na cidade.

Em afronta às leis em vigor, a começar da Lei Maior -nossa pisoteada Constituição cidadã.

CÁSSIO SCHUBSKY, 44, editor e historiador, é organizador do livro “Clóvis Beviláqua, um Senhor Brasileiro” (Editora Lettera.doc).

 

+ sobre o tema

Luíz Gama

Luís Gonzaga Pinto da Gama (Salvador, 21 de junho...

Pesquisas apontam Machado de Assis como o autor brasileiro mais estudado

A doutoranda da Universidade de Brasília (UnB) Laeticia Jensen...

O Negro da senzala ao soul: Um documentário da TV Cultura 1977

Gabriel Priolli resgata um vídeo que conta a história...

Lélia Gonzalez: Mulher Negra na História do Brasil

Neste ano de 2009, já contamos 15 anos que...

para lembrar

Um (singelo) tributo a Luiz Gama

Não sou eu graduado em jurisprudência, e jamais frequentei...

CineB Solar promove três exibições gratuitas de Doutor Gama em São Paulo

O CineB Solar, parceria do Sindicato dos Bancários de São...

Milton Santos

Milton Almeida dos Santos (Brotas de Macaúbas, Bahia, 3 de...

Ao vencedor, as batatas

O Adamastor me chegou indignado, outro dia, com o...
spot_imgspot_img

Brasil e EUA voltam a articular plano contra discriminação racial; veja como funciona o acordo entre os países

O Brasil e os Estados Unidos promoveram a primeira agenda entre congressistas e a sociedade civil desde a retomada do acordo de cooperação bilateral...

Luiza Mahin: a mulher que virou mito da força negra feminina

Não há nenhum registro conhecido sobre Luiza Mahin, mulher que possivelmente viveu na primeira metade do século 19, que seja anterior a uma carta...

Heróis negros “invisíveis”

Quando pensamos em antirracismo no Brasil é mais fácil lembrar de nomes do século 19 (como o do abolicionista Luiz Gama) ou de ícones...
-+=