Fátima Oliveira: A caminho das reparações da crueldade escravocrata

Não dei conta de acompanhar as duas sessões do Supremo Tribunal Federal (STF) em que analisaram as cotas raciais/étnicas, dias 25 e 26 de abril passado. A emoção era tamanha que preferi não ver.

Por Fátima Oliveira

As imagens e pedaços de discursos que vi e ouvi e a posterior leitura dos votos que asseguraram unanimidade na decisão do STF – as ações afirmativas são constitucionais – evidenciam que, se Executivo e Legislativo nacionais historicamente se omitiram quanto à promoção de reparações a quem tem o mérito de ter construído este país no lombo, via políticas de ação afirmativa, fazendo valer as leis de igualdade, o STF, quando instado, pela primeira vez, não abriu mão de cumprir o seu dever de guardião da Constituição Federal.

O STF se debruçou sobre três ações que alegavam a inconstitucionalidade de: cotas raciais/étnicas na universidade, ajuizada pelo Partido Democratas (DEM), em 2009, contra a UNB; o perfil do estudante do Prouni (2004): concessão de bolsas de estudo em universidades privadas e que, segundo (pasmem!) a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenem) feriam o princípio constitucional da isonomia; e a terceira ação, ajuizada por Giovane Pasqualito Fialho, “reprovado no vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para o curso de administração, embora tivesse alcançado pontuação superior a quem foi admitido pela reserva de vagas para egressos das escolas públicas e negros”.

O alcance do que foi analisado e definido no STF sobre as ações afirmativas é tamanho que ouso dizer que, de algum modo, o tribunal abriu o caminho para que, de fato, o Brasil comece a reescrever a Lei Áurea, atitude que nem o Estatuto da Igualdade Racial conseguiu adotar, pois o governo o submeteu à negociação com a banda mais podre dos racistas de plantão, entregando o relatório a uma figura que não teve sequer o pudor de dizer que o estupro colonial era uma miragem, pois as relações sexuais entre escravistas e escravas eram consensuais! O resultado foi uma lei meia-boca, louvada como “o Estatuto possível” e, não, o “Estatuto necessário”, suficientemente robusto para enfrentar práticas racistas institucionalizadas no Estado brasileiro.

Entendo que todos os votos do STF, pelo conteúdo argumentativo de cada um, deveriam ser incluídos em todos os livros didáticos de história brasileira, não apenas como uma forma de torná-los inesquecíveis, mas para que as gerações futuras tenham o acesso facilitado a uma forma exemplar de cumprimento do princípio constitucional da igualdade no tocante a práticas racistas naturalizadas e banalizadas na vida social e política brasileira.

O ministro-relator, Ricardo Lewandowski, foi categórico em declarar que, na efetivação do princípio constitucional da igualdade, “o Estado pode lançar mão de políticas universalistas (de grande alcance) e, também, de ações afirmativas, que levam em conta a situação concreta de determinados grupos sociais” – o seu voto é uma peça literária, jurídica e política vigorosa e imbatível, como bem disse o ministro Joaquim Barbosa, único negro em nossa Corte Suprema, para referendar que as ações afirmativas concretizam princípio constitucional da igualdade em sociedades competitivas: “O voto de Vossa Excelência está em sintonia com o que há de mais moderno na literatura sobre o tema”, além do que pontuou: “As ações afirmativas não são ações típicas de governos, podendo ser adotadas pela iniciativa privada e até pelo Poder Judiciário, em casos extremos”.

 

 

 

Fonte: Viomundo

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