Alex Castro – O Peso da História: A Escravidão e as Cotas

por Alex Castro

A História ainda é uma bola de ferro que os descendentes dos escravos arrastam pelos tornozelos. Os efeitos nocivos da escravidão continuam afetando os bisnetos de suas vítimas diretas.

Eu (n.1974) cursei o ensino fundamental no Colégio Santo Agostinho, o médio na Escola Americana do Rio de Janeiro e, depois, História no IFCS/UFRJ (’99) porque meu pai cresceu em Botafogo, fez o ensino médio no Colégio Andrews e se formou bacharel em Economia (’70) pela mesma UFRJ.

Meu pai (n.1946) estudou na UFRJ porque meu avô estudou engenharia no Instituto Eletrotécnico de Itajubá, atual Universidade Federal de Itajubá (’38) e trabalhou durante muitos anos para a Chesf (Companhia Hidro-Elétrica do São Francisco), inclusive nas obras do Complexo Hidrelétrico de Paulo Afonso.

Meu avô (n.1909) foi engenheiro porque meu bisavô (n.1876) saiu do Mato Grosso (onde seu pai, veterano do Paraguai, estava servindo desde a guerra) pra estudar no Colégio Militar do Rio de Janeiro, onde foi comandante-aluno de 1897, depois formando-se engenheiro militar, participando do episódio dos 18 de Forte e reformando-se coronel.

Em 1888, com 12 anos de idade, meu bisavô estudava na capital do Império, em um dos melhores colégios públicos do país, com bolsa integral, soldo e emprego garantido após a formatura.

Se, ao invés disso, nesse mesmo ano, ele tivesse sido libertado (leia-se posto pra fora de casa) com a roupa do corpo, analfabeto e despreparado, sem conhecer pai e mãe, desprovido de qualquer poupança ou bens*, teriam seus descendentes estudado nas melhores escolas e universidades do país e feito parte da elite brasileira?

Sem esse capital socio-econômico e cultural acumulado pelo meu bisavô em 1888 (para não irmos mais longe), onde teria ido parar a cadeia de acontecimentos que desembocou na minha vida? Estaria eu, nesse momento, sadio e medindo 1,80m, cursando um doutorado em Nova Orleans e escrevendo essas linhas? Dentre minhas realizações, quantas são exclusivamente por mérito meu e quantas são consequência direta da vida privilegiada que eu e meus antepassados levamos? Que tipo de dívida EU tenho com as pessoas que não tiveram tanta sorte? Será ético simplesmente dizer “sorte minha, azar deles, e foda-se, hoje já nivelou tudo e no vestibular todos têm chances iguais”?

Dado que os efeitos nocivos da escravidão ainda se fazem sentir na pele dos descendentes das vítimas, não é tarde demais para serem indenizados pelo Estado.

E as cotas são um bom começo.

* * *

*Riqueza [wealth] é um indicador mais importante de desigualdade racial do que renda pois, ao ser transmitida de uma geração a outra, acaba reproduzindo injustiças históricas ao longo do tempo. Por exemplo, nos Estados Unidos hoje, enquanto a renda dos negros é 75% da dos brancos, sua riqueza líquida é de somente 18%. (Telles, 116, Mills, 37-38) Esse texto sobre cotas tem uma série de adendos e respostas a comentários dos leitores que podem ser lidos aqui. Leia também: Brasil, Meritocracia de Todos. Ou melhor, leia meus melhores textos sobre raça no Brasil.

 

Fonte: Alex Castro

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