Dennis de Oliveira: O plebiscito, os médicos e a contradição entre Casa Grande e Senzala

 

A presidenta Dilma Rousseff buscou retomar a iniciativa política com as respostas que deu às manifestações populares que ocorreram em todo o país nos meses de junho e julho. Após as várias vitórias obtidas com a redução do preço do transporte coletivo, outras reivindicações ganharam corpo. De forma oportunista, a oposição e a mídia hegemônica tentaram capitalizar estes protestos para desgastar a imagem da presidenta que, até aquele momento, batia recordes de popularidade e caminhava para uma reeleição tranquila em 2014.

O aspecto positivo deste novo embate foi que ficaram evidenciados os antagonismos de classe no Brasil – ficou nítida a divisão entre a Casa Grande e a Senzala, divisão sempre mascarada ou mitigada pelos mitos de democracia racial, pacifismo ou até mesmo uma “cordialidade” (no sentido de bondade) do povo brasileiro no seu conjunto.

A contradição Casa Grande e Senzala ficou abertamente expressa no debate sobre o plebiscito. Evidente que a oposição foi contra esta proposta da presidenta. Porém, os argumentos expressos nesta posição evidenciaram como o preconceito contra a população brasileira está no DNA das elites brasileiras. “O povo não vai saber votar em uma coisa tão complexa” foi a tônica dos argumentos. Em outras palavras, a população não tem capacidade de decidir, por si própria, qual sistema político deve ser adotado e, por conta da sua “incapacidade” ou “dificuldade de compreensão”, deve delegar esta tarefa para os seus representantes que são… os parlamentares que tanto são criticados pela mídia hegemônica como genericamente corruptos.

A argumentação da presidenta é pertinente: como pode esperar que parlamentares eleitos por um sistema político-eleitoral mudem este mesmo sistema que os beneficia? O fato de o Congresso Nacional estar há mais de 20 anos debatendo o assunto sem tomar qualquer decisão é uma prova disso.

Os brancos de branco da Casa Grande

A contradição Casa Grande e Senzala ficou ainda mais explícita na polêmica envolvendo o programa Mais Médicos. O governo federal implantará um programa de contratação maciça de profissionais da medicina para incrementar o debilitado sistema público de saúde nas regiões mais carentes. Um dos maiores problemas destas regiões é a falta de médicos. Todos os indicadores mostram que a proporção de médicos por habitante nestas regiões é inferior à média nacional e muito inferior à das regiões mais ricas.

O governo tem aberto concursos e processos seletivos para estas vagas, mas não tem havido interesse dos profissionais brasileiros em ocupá-las. Qual foi a solução proposta? Abrir para profissionais estrangeiros. A grita foi e tem sido grande por parte de entidades representativas dos médicos.

Primeiro, disseram que os médicos não vão trabalhar nestas regiões porque “as condições são precárias”, argumento de que poucos discordam. Porém, as condições desfavoráveis dificultam não apenas os trabalhos dos médicos, mas de qualquer profissional – as escolas de periferia também são precárias e não é por isso que professores se recusam a trabalhar nelas (claro que faltam professores, mas não se chega à situação que envolve a área da saúde). Depois dizem que o problema destas regiões não é a “falta de médicos”, e sim a “estrutura de atendimento”, como se uma coisa excluísse a outra. E, finalmente, a gritaria foi ainda maior com a proposta de incluir um estágio obrigatório no Sistema Único de Saúde (SUS) de dois anos para os estudantes de medicina, proposta que deverá ser implantada nos cursos a partir de 2015.

Observando o histórico dos cursos de medicina no Brasil, observa-se a sua origem aristocrática, tendo sido, durante boa parte do início do século XX, um dos núcleos de formação do pensamento higienista e toda a sua caracterização racista.

Se este pensamento não se expressa mais de forma contundente, o elitismo dos cursos e da profissão se mantém, criando as bases materiais para que esta ideologia do preconceito se manifeste firme e forte. O descompromisso com o problema da saúde pública brasileira é evidente, basta ver a pequena participação destas mesmas entidades representativas dos médicos que hoje condenam a proposta do governo nos movimentos populares de saúde. Quem tem liderado estes movimentos, expressos nas conferências e nos conselhos de saúde, não são estas organizações que saem agora denunciando as más condições dos equipamentos públicos de saúde para mascarar o corporativismo.

Estes sentimentos expressos nestes embates são das mesmas pessoas que se opõem às cotas para negros e pobres nas universidades públicas; que são contra o Bolsa Família e programas de transferência de renda para os mais necessitados, entre outros. Não porque isto as prejudicará como classe social, mas por terem ojeriza a partilhar espaços, por mínimos que sejam, com pessoas de classes subalternas. Não é à toa que um dos cartazes de uma médica que se manifestava contra o programa do governo fazia ofensas de caráter classista e preconceituoso contra o ex-presidente Lula. A Casa Grande entra em rebuliço quando a Senzala não se contenta apenas com restos de comida.

Dennis de Oliveira, professor da Universidade de São Paulo, coordenador do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) e membro do Núcleo de Pesquisas e Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro (Neinb). E-mail: [email protected]

 

Fonte: Revista Fórum

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