Blue Jasmine, um filme sobre mulheres

Por Adriano Senkevics

O diretor estadunidense Woody Allen é bastante conhecido por retratos cômicos sobre crises na vida de suas personagens, como em Meia Noite em Paris (2011) e Vicky Cristina Barcelona (2008). Em Blue Jasmine (2013, EUA), não é diferente. Para além de uma crônica dramática sobre sucessos e fracassos, somada a uma sátira às bitolas e trambiques das elites, no seu mais recente longa-metragem Allen traz um sério e perspicaz debate sobre a condição feminina em sociedades como a norte-americana.

Recheado de sutilezas, o enredo conta um pouco dos insucessos de Jasmine, em interpretação grandiosa de Cate Blanchett, procurando retomar sua vida após uma profunda crise. Separada de seu ex-marido Hal (Alec Baldwin) – um milionário que roubava muita grana e, como de praxe, fazia caridade para manter a imagem de bom moço – a protagonista sai de sua luxuosa cobertura em Nova York e recorre à sua irmã Ginger (Sally Hawkins), adotiva tal como ela própria, moradora de um subúrbio de São Francisco e cujos hábitos de vida sempre foram muito mais modestos, inclusive por culpa da própria Jasmine e de Hal, quem utilizou o capital de Ginger e seu esposo para mais um de seus enriquecimentos ilícitos.

 

Deixando para trás o yoga, o pilates e as festas glamorosas, a protagonista se vê diante da necessidade de, pela primeira vez, construir sua própria trajetória. Sem formação inicial (pois abandonara seu curso de Antropologia para casar), sem experiência profissional e sem dinheiro, Jasmine é colocada perante o desafio de equilibrar a vida de futilidade e ostentação que sempre teve (com direito à bolsa Louis Vuitton) e as dificuldades que uma pessoa comum enfrenta em sua vida ordinária. É a tal simplicidade que Jasmine não está adaptada, fato que não a impede de expor todo seu desgosto pela situação em que se encontra.

As principais mulheres do filme – Jasmine e Ginger – são, na verdade, absolutamente coadjuvantes no tocante à própria vida que levavam. A primeira, por ter enriquecido à sombra de seu marido e perdido tudo após sua falência seguida de suicídio – a imagem do seu marido do qual ela não se livrava. A segunda, por ser constantemente humilhada e/ou dominada, seja por um namorado violento e machista, seja por um amante que, com ares românticos, só lhe deu falsas esperanças. Em uma das discussões com seu namorado, Ginger sofre graves ameaças e tem seu telefone arrancado da parede em meio à demonstração de uma masculinidade que nos remete imediatamente à violência doméstica.

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Jasmine, apesar de representar somente a ínfima parcela de mulheres milionárias no mundo, traz consigo uma série de conflitos usualmente vivenciados por mulheres comuns: abandonar sua carreira para se casar, ser apenas uma first lady ao lado do seu esposo, sofrer tentativas de abuso sexual no ambiente de trabalho etc. Frente a esse quadro, Jasmine não vê alternativa mais fácil a arranjar outro marido “bem sucedido”. Ela tenta. E o que escuta desse novo amante (papel de Peter Sarsgaard) – que pretendia ser deputado pela Califórnia – é algo como: “você só vai precisar ficar ao meu lado e sorrir nas fotos”. No fundo, esse era o único horizonte de sucesso que Jasmine encontrava.

Sua irmã, por sua vez, se distinguia de Jasmine por um imenso abismo de classe social. Além de ignorada pela própria irmã em tempos de fartura, Ginger vivia rodeada da falta de opções e, assim como Jasmine, de uma completa ausência de perspectivas. Moradora de uma residência simples (que parecia aconchegante, embora o filme se referisse a ela pejorativamente), Ginger não tinha outra saída senão passar o resto da vida como empacotadora de supermercado. Mesmo humilhada pelo namorado, Ginger permanecia com ele porque, em sua visão, era o melhor que ela merecia. Jasmine, em meio a sua depressão crônica, chegou a ser sincera e afirmar: “há vários homens bons por aí que não arrancariam um telefone da parede!”.

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Essa situação em que as duas se encontravam não as isenta de críticas, é claro. Jasmine, vislumbrada com seu “sucesso”, vestiu de cabo a rabo a camisa de uma socialite consumista, arrogante e superficial. Esta fachada é tão identidária que está representada na mudança de nome adotada pela protagonista: nascida Jeanette, ela se reinventa como Jasmine. Em momento nenhum desse processo a personagem buscou construir sua própria autonomia. Seu dinheiro, portanto, serviu apenas para torná-la mais dependente, pois além de submissa ao marido – que carregava o status da família e ainda colecionava amantes – ela ficou restrita ao fetiche da mulher rica, desligada de qualquer causa e míope para injustiças, até mesmo aquelas que ela sofria. Era incapaz, assim, de compreender a fundo sua própria condição. Refugiava-se na bebida, nos remédios e no sonho improvável de reconstruir sua trajetória de “sucesso” por meio de mais uma mamata com ares de oportunismo.

Cheio de sutilezas, dignas de um diretor brilhante e experiente como Woody Allen, o longa-metragem conta com a atuação de Cate Blanchett que enriqueceu seu papel com altos e baixos, olhares depressivos, expressões de fracasso e toques de arrogância. Uma personagem que nós aprendemos a desgostar de tão egocêntrica e desumana, mas por quem mesmo assim construímos alguma simpatia. A leveza da comédia – como nas cenas em que Jasmine fala sozinha, investe em longos monólogos ou dá conselhos adultos às crianças – contrasta com o peso do drama que, ao reflexo de outras obras do diretor, ilustra uma história que começa mal e termina mal.

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Surpreendeu-me, todavia, a insensibilidade de muitas críticas que li na internet às questões femininas que estão gritantes na obra. Com exceção do texto assinado por Richard Miskolci (pesquisador da UFSCar em gênero e sexualidade), poucos ensaios atentaram para debates de gênero que marcam a trajetória das duas personagens mulheres e focaram exclusivamente no deboche de classe social que Allen costuma empreender nos seus filmes, pelo seu habitual desprezo a tradições e formalidades. Mas o filme não se resume a isso.

Blue Jasmine, com muita inteligência, pega um exemplo pouco representativo de uma mulher da elite e nos estimula a uma reflexão mais ampla. Não que trate exclusivamente disso, mas nos permite rapidamente tais associações. Uma obra provocante, original e bem realizada. Vale muito a pena ir ao cinema para assisti-la e, de preferência, sem se esquivar dos toques que o filme dá sobre o que Jasmine representa para nós, mulheres ou homens.

 

Trailer em inglês

Fonte: Ensaios de Gênero

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