A semana apenas começava, quando a boa-nova vinda do outro lado do Atlântico se espalhou. A França, em votação maiúscula no Parlamento (780 votos em 852), aprovara incluir no texto constitucional o direito de mulheres interromperem a gravidez. Havia meio século que as francesas tinham autorização para abortar via lei específica. A inscrição na Carta Magna, inédita no planeta, sedimenta a garantia. Tão logo seja promulgada, provavelmente neste Dia Internacional da Mulher, não mais haverá risco de flutuar ao sabor de governos, ventos ideológicos, arroubos morais, convicções religiosas. É muito mais difícil — ao menos lá — mexer na Constituição, comentou uma emocionada Comba Marques Porto, feminista histórica, com papel importante na formatação da Carta de 1988 como membro do Conselho Nacional da Mulher.
Não apenas nas ruas de Paris, mas mundo afora, ativistas, organizações feministas, profissionais de saúde, estudantes, políticas, gente comum celebraram a mudança aprovada em Versalhes. A decisão legislativa, abraçada pelo presidente Emmanuel Macron em publicação imediata em rede social, foi vista como reafirmação do Estado laico. E içada contraofensiva a um ambiente global crescentemente conservador, que avança — ou tenta — sobre direitos sexuais e reprodutivos de mulheres, a começar pelos Estados Unidos, onde a Suprema Corte reviu, em 2022, decisão que garantia o direito ao aborto havia 49 anos.
No Brasil, o ambiente é igualmente de retrocesso, resultado de um Congresso Nacional, a cada pleito, mais conservador e empenhado em impregnar com moral religiosa os direitos civis. A legislação que autoriza o aborto em casos de estupro e risco de vida para a gestante — mais tarde, o Supremo Tribunal Federal adicionou a interrupção em caso de feto anencéfalo — é de 1940. Fora isso, uma mulher que aborta está sujeita pelo Código Penal a prisão por até três anos.
Em 2017, o PSOL foi à Corte arguir a inconstitucionalidade da criminalização, sob a alegação de comprometer a dignidade da pessoa humana, a cidadania das mulheres, o direito à saúde e à integridade física e psicológica. Além disso, é medida que, comprovadamente, afeta desproporcionalmente mulheres pretas, pobres, indígenas, de baixa escolaridade, moradoras de áreas remotas. Por ano, quatro centenas de brasileiras são denunciadas por interrupção de gestação. Estão predominantemente na base da pirâmide. São também elas que saem mutiladas ou mortas de práticas sem segurança sanitária, que custam ao SUS e, por óbvio, à sociedade.
No ano passado, a então presidente do STF, ministra Rosa Weber, pôs a ação em julgamento. Foi relatora de um voto histórico de 129 páginas, em que se debruçou sobre cada dimensão de um assunto complexo que, de forma recorrente, vem sendo tratado — predominantemente por homens — com a profundidade de um pires e a cegueira do fanatismo religioso, num Estado que se supõe laico. Luís Roberto Barroso, que sucedeu a Rosa na presidência do STF, interrompeu o julgamento virtual. Não há previsão para o assunto voltar ao plenário. Na sabatina no Senado que o aprovou para o Supremo, Flávio Dino, recém-empossado, manifestou opinião contrária ao voto da antecessora. A Corte tem hoje somente uma mulher, Cármen Lúcia, entre 11 integrantes.
A tão barulhenta quanto numerosa bancada conservadora no Legislativo insiste em reduzir o assunto ao Fla-Flu do contra ou a favor, como fosse esse o debate. Mesmo quem, por princípio, não aprova, às vezes interrompe uma gestação, por razões socioeconômicas, familiares, de saúde, particulares. Está em jogo dar a uma mulher o direito a decidir sobre o próprio corpo, algo que jamais foi negado aos homens. É oferecer políticas públicas de educação sexual, acesso a contraceptivos e, se necessário, a interrupção gestacional segura, que não tire a vida nem adoeça meninas, jovens, adultas. Aos 40 anos, uma em cada sete mulheres brasileiras já abortou, a esmagadora maioria por meios clandestinos. Com ou sem permissão legal.
Ao STF caberá decidir — sabe-se lá quando — se uma mulher que interrompe a gestação deve ou não ir para a cadeia. No mundo político, há convicção de que, se o Congresso for provocado, virão proibição total e criminalização absoluta. As mesmas Excelências, em defesa da vida, condenam o aborto; em nome da segurança pública, regozijam-se com o encarceramento e a execução sumária de jovens, sobretudo negros, criminalizados nas periferias país afora.
Na véspera do 8 de Março, a Rede de Observatórios de Segurança apresentou o relatório “Elas vivem: liberdade de ser e viver” sobre violência de gênero. No ano passado, em oito estados (BA, CE, MA, PA, PE, PI, RJ e SP) 3.181 brasileiras sofreram algum tipo de violação, de agressão verbal a tortura, de cárcere privado a estupro, de agressão física a assassinato. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública, também ontem, informou que, desde a entrada em vigor da Lei 13.104/2014, houve 10.655 registros de feminicídio. Em 2023, 1.463 perderam a vida só por serem mulheres, o maior número da série histórica.
Enquanto francesas celebram, brasileiras padecem. Por todos os lados.