A EJA está mais juvenil

Para Maria Clara Di Pierro, o insucesso no ensino formal está levando os alunos a acelerarem os estudos na educação de jovens e adultos, ainda carente de recursos e políticas

 

Por Lívia Perozim /Do Atempa

 
As políticas públicas para combater o analfabetismo no Brasil começaram a ser implantadas no fim dos anos 40. Naquela época, mais da metade da população não sabia ler ou escrever. Nos últimos 30 anos, o perfil dos que estão nas salas de educação de jovens e adultos (EJA) não é mais o de pessoas que nunca estiveram na escola.

Nas salas de EJA os jovens que tiveram uma passagem breve e com poucas aprendizagens na escola são maioria. Os alunos mudaram, mas os resultados dos programas de alfabetização continuam ruins. Segundo dados da Unesco, referentes à América do Sul, o Brasil só não está pior do que a Bolívia.

Entre as razões desse atraso, segundo a professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo Maria Clara Di Pierro estão a falta de continuidade das políticas e a inadequação pedagógica e organizacional dos cursos. Nesta entrevista a Lívia Perozim, Maria Clara, pesquisadora das políticas públicas de EJA no Brasil e na América Latina, explica a mudança de perfil dos alunos da EJA e critica o caráter precário e limitado dos programas atuais.


Carta na Escola: Apesar da expansão do acesso à escola, a taxa de analfabetismo no Brasil continua alta (cerca de 10%). Por que a educação de jovens e adultos não resulta em um grau melhor de alfabetização?

 

Maria Clara di Pierro: Essa expansão do acesso à educação básica não repercutiu nas gerações de adultos. A taxa de analfabetismo está mais relacionada ao acesso à educação básica, à evolução do analfabetismo na infância e adolescência, do que à educação de adultos. Quando falamos da diminuição de 2 milhões de analfabetos, não significa que alfabetizamos 2 milhões de pessoas. Provavelmente, morreu um monte de velhinhos analfabetos e entraram, na faixa de 15 anos ou mais, jovens que não foram alfabetizados.

 

CE: Hoje, qual o perfil do aluno da EJA?
MC: Existem os analfabetos absolutos, pessoas que nunca foram à escola, mas eles são minoria. A grande parte dos alunos passou pela escola, mas teve uma passagem breve, malsucedida, com poucas aprendizagens relevantes.

 

CE: O fracasso dos jovens no ensino formal os levou para a EJA?
MC: A EJA foi ficando cada vez mais juvenil. No passado, quando havia um contingente alto de população da zona rural chegando às cidades, essa modalidade teve a função de proporcionar o acesso à educação aos que nunca tiveram. Nos últimos 30 anos, prevaleceu a função de aceleração de estudos para jovens com defasagem na relação idade/série. Temos hoje, na EJA, uma população que foi fruto de processos de exclusão escolar: repetição, evasão, ingresso precoce no mundo do trabalho.

 

CE: O CNE ampliou de 15 para 18 anos a idade mínima do aluno da EJA…
MC: Esse parecer ainda não foi homologado e é muito polêmico porque, segundo a legislação em vigor, as idades mínimas são de 14 anos para o Ensino Fundamental e 17 anos para o Ensino Médio.

 

CE: Como a entrada dos jovens que já tiveram acesso à escola interferiu na EJA?

 

MC: Mudou o perfil. Você costuma ter dois perfis: o adulto, frequentemente migrante da zona rural, que tem uma representação da escola bastante tradicional. Embora tenha sido excluído, ele aspira fluir o direito à educação. Mas não tem experiência. É mais lento, tem outras estratégias de resolução de problemas. O outro é o grupo dos adolescentes. Eles já são urbanos e tiveram acesso a uma escola, mas viveram experiências de insucesso e exclusão. O primeiro grupo tem uma visão mais positiva da escola. O outro tem uma visão negativa: contesta a autoridade professoral, não atribui um valor intrínseco ao conhecimento escolar e está lá porque precisa do diploma.

 

CE: Como o professor fica diante dessa diversidade?
MC: É uma queixa recorrente. Há uma expectativa de um aluno ideal e de uma homogeneidade que não existe em contexto humano nenhum. A diversidade é um aspecto positivo. As ideias de segregar a educação juvenil da de adultos só faria sentido se você fizer um projeto político pedagógico voltado para cada um dos grupos. No fundo, por trás dessas queixas, há muito preconceito com o jovem. O aluno adulto é tudo o que você quer: ele te adora, não faz bagunça, colabora. Às vezes, pelo oposto, por se colocar numa posição subalterna e dependente. Os professores nem percebem, mas reforçam essa atitude porque isso é cômodo.

 

CE: Quem são os professores da EJA?
MC: Há dois grandes grupos: um de pessoas sem habilitação formal para o magistério, os chamados educadores populares. São pessoas que têm sensibilidade social e inserção nas comunidades, mas, frequentemente, não têm o domínio do campo pedagógico. Alfabetizar não é uma tarefa difícil, tampouco é banal. Por outro lado, há um grupo de profissionais do ensino cuja formação acadêmica foi voltada para a infância e a adolescência. A EJA é uma disciplina optativa e a temática não é transversalizada.

 

CE: Segundo o Inep, apenas 2% das instituições que oferecem o curso de Pedagogia têm habilitação em EJA. Por quê?
MC: Como a educação de adultos não configurou uma política contínua e estável, isso não conforma o mercado de trabalho para a docência. A atual norma da pedagogia eliminou as antigas habilitações. Quando existia, a procura pela EJA era baixa. O estudante não tinha segurança de que teria mercado. Não há concursos específicos. Não se incentivou o viés da especialização e não houve políticas públicas para incorporar a modalidade ao currículo. Compare com a educação infantil. Hoje, ela é uma realidade e abrange crianças de 0 a 6 anos.

 

CE: A EJA não é pensada como uma política continuada?
MC: Tem-se uma fantasia de que a EJA é algo temporário, que, com um esforço, a gente vai se recuperar em um futuro breve. Só que desde os anos 40 fazemos isso. No momento em que foi criado este serviço, que coincide com fim da Segunda Guerra Mundial e a criação da Unesco, era uma estratégia global. O Brasil tinha mais da metade da população de analfabetos. É com essa marca de mobilização e urgência que a EJA aparece e se perpetua. Mas sempre com uma certa precariedade e em períodos muito breves. Os resultados são escassos porque essa capacidade de mobilizar vai diminuindo, a regressão ao analfabetismo é muito alta e faltam oportunidades de uso social da linguagem e da escrita.

 

CE: Os dados do Censo mostram uma diminuição no número de matrículas de EJAno Ensino Fundamental. O que isso representa?
MC: Essa é uma questão muito problemática. A EJA sempre ocupou uma posição marginal nas políticas públicas. O Fundef (fundo de financiamento ao ensino fundamental que vigorou de 1996 a 2006) não permitiu a inclusão de matrículas de jovens e adultos. A inclusão da modalidade no Fundeb (atual fundo de financiamento da educação básica) não conseguiu trazer o efeito positivo que se esperava. Não há estudos conclusivos porque os fatos são muito recentes. Alguns gestores públicos creditam a queda de matrículas aos programas federais ProJovem e Brasil Alfabetizado.

 

CE: E a senhora concorda?
MC: Estamos assistindo a um fechamento de vagas na educação de jovens e adultos. A EJA entrou numa posição desvantajosa no Fundeb: o gasto não pode exceder 15% do fundo, as matrículas entraram progressivamente. Só em 2009 que 100% das matrículas puderam entrar. O custo aluno é retribuído pelo menor fator. Ele recebe 80% do que receberia um aluno do ensino regular sem nenhuma justificativa. Há pouca atratividade para o gestor. Eles operam com uma racionalidade economicista, o que não favorece a inclusão escolar.

 

CE: Ou seja, houve um esforço maior, mas ainda insuficiente?
MC: A realidade é sempre mais complexa. Nos últimos dez anos, o governo Lula fez todo o investimento que fez e a curvinha do analfabetismo não teve nenhuma inflexão. A redução dos analfabetos não está respondendo ao Brasil Alfabetizado. Campanhas com esse modelo, num período muito breve, com professor não qualificado, não funciona. Desde 2003, são inseridas de 1 a 2 milhões de pessoas, por ano, no Brasil Alfabetizado. Se o programa tivesse obtido sucesso, teríamos 12 milhões a menos de analfabetos. Mas não diminui. As avaliações mostram que o programa agrega muito pouco a essas pessoas.

CE: E nos ensinos municipal e estadual?
MC: A oferta tem um sério problema de adequação pedagógica e organizacional. O modelo tende a reproduzir a educação de crianças e adolescentes. Falta flexibilidade. Aqui, em São Paulo, querem que o aluno fique na escola de segunda a sexta, das 7 às 11 horas. Isso é incompatível com o exercício da função materna, a segurança na cidade e outras exigências. Falta também um currículo pedagógico mais conectado com as necessidades de aprendizagem das formas de vida das pessoas.

 

CE: Falta também material didático?
MC: Isso está mudando. Este ano, estamos fechando esse ciclo de institucionalização. O governo Fernando Henrique focou o Ensino Fundamental e deixou descobertos outros setores. O governo Lula abriu outros campos e foi mudando pequenas coisas. Demorou, mas fez a inclusão da EJA no Fundeb. Depois, incluiu a merenda e o transporte escolar. Por último, veio o livro didático. As editoras agora vão começar a produzir material.

 

CE: Como estamos em relação aos nossos vizinhos na América Latina?
MC: O Brasil, em termos absolutos, tem o maior contingente de analfabetos e pessoas com baixa escolaridade da América Latina. Em termos porcentuais, estamos em um grupo que tem Bolívia e Peru, países com uma população indígena e rural numerosa, e, portanto, questões complexas de bilinguismo.

 

CE: Nordestinos, negros e pessoas de baixa renda são a maioria dos analfabetos. As políticas públicas de alfabetização estão isoladas?
MC: O analfabetismo tem uma simetria muito grande com os processos de exclusão. Como a pobreza está concentrada na zona rural, no Norte e Nordeste, nas populações afro-descendentes, a distribuição do analfabetismo é recortada por esses mesmos indicadores. E, no passado, pela questão de gêneros. Hoje, temos mais mulheres analfabetas nas populações mais velhas. Nos grupos de idades mais jovens, é o contrário. As mulheres estão tendo mais êxito.

 

CE: Que experiência internacional em EJA obteve sucesso?
MC: Cuba é um caso extraordinário de sucesso. Mas eles não pararam na alfabetização. Fizeram sucessivas “superações”, como chamam. Foi uma contínua política que teve mobilização, mas em um contexto muito específico. Hoje eles têm alguns programas compensatórios dos jovens que não concluíram os ensinos médio e superior. E têm um programa de acesso ao ensino superior para os adultos.

 

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