A lição dos cotistas médicos da Uerj

Por: ELIO GASPARI

O próximo grande julgamento do Supremo Tribunal Federal poderá ser o da constitucionalidade das cotas nas universidades públicas brasileiras. Já se conhece o voto do ministro-relator, Carlos Ayres Britto, a favor.

Está aí um caso em que a lentidão do Judiciário serviu para limpar o debate, impondo-lhe fatos da realidade. Quando ele começou, em 1999, valia tudo. As cotas seriam uma coisa “escalafobética”, medida “para inglês ver”. Degradariam as universidades levando-lhes alunos despreparados que não concluiriam os cursos. Pior: abririam as portas para o ódio racial.

Passaram-se 12 anos, 70 das 98 universidades públicas adotaram algum tipo de cota, sobretudo para alunos vindos de escolas públicas. Entre elas, 40 abriram vagas para estudantes descendentes de escravos ou índios. O ódio racial continuou onde sempre esteve, na cabeça de quem o tem.

A repórter Márcia Vieira radiografou a turma de 94 alunos que se formou em Medicina na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Entre eles há 43 médicos que só chegaram ao curso superior porque a Assembleia Legislativa criou um regime de cotas. Evasão? Quatro para cada grupo.

O apocalipse ficou para outra ocasião. Essa conversa é antiga. Nos debates da Abolição, o Visconde de Sinimbu avisava: “Brincam com fogo os tais negrófilos”. As cotas seriam constrangedoras para os negros. Tudo bem, segundo o romancista José de Alencar, a Lei do Ventre Livre também lhes seria prejudicial, verdadeira “Lei de Herodes”. Como dizia o Visconde de Sinimbu, “a escravidão é conveniente, mesmo em bem ao escravo”. Só os cativos e os negrófilos não entendiam isso.

Em alguns casos, como o da Uerj, as universidades cumprem leis estaduais. Em outros, cada uma exerce sua autonomia e desenha a própria política. A maioria das escolas ficou na norma autodeclaratória. Se o jovem se declarou carente e passa férias em Ibiza (como já sucedeu na Uerj), ou se um louro de olhos azuis diz que é pardo, ambos são vigaristas. A política que fraudou nada tem a ver com isso. A exposição pública dos delinquentes e a imposição do risco de expulsão seriam bom remédio.

Ainda no caso da Uerj, dois números indicam que a defesa das cotas deve se afastar de situações irracionais. Ela segue um sistema criado pela Assembleia Legislativa que, pura e simplesmente, fixou percentagens para a linha de chegada. Por exemplo: 45% das vagas devem ir para alunos que comprovem renda per capita inferior a R$ 960,00 na família. Isso fez com que a relação candidato/vaga no vestibular fosse de 5,33 para os cotistas e de 55,8 para os demais. Resultado: para ser admitido, um não cotista precisou tirar pelo menos 75,75 pontos. Ao cotista bastaram 41,5. Sempre haverá um não cotista com nota superior à de um candidato que foi beneficiado pela iniciativa, pois a política de cotas é um generoso incentivo à inclusão. Contudo, diferenças desse tamanho resultam numa exclusão difícil de ser explicada. A distância entre o barrado e o admitido – 34,25 pontos – foi quase do tamanho da nota do cotista.

Como resolver? Estabelecendo que a distância entre a nota de um não cotista barrado e a de um cotista admitido não poderá ser superior a um determinado número de pontos. Dez? 15? 20?

A evasão foi irrelevante, o ódio racial não apareceu e as cotas levaram mais negros e pardos ao curso superior.

 

 

Fonte: Adv Saúde

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