Abolição de fato!

por Edialeda Salgado Nascimento

 

Após tantos séculos de silêncio e opressão, quando temos a oportunidade de trazer nosso protesto e nossas reivindicações à Casa do Povo, que é a Câmara Federal, gostaríamos de abordar um sem número de assuntos e temas. Contudo, para sermos objetivos e eficazes, preferimos trazer à luz da discussão, alguns tópicos, que talvez não sejam todos os mais importantes, mas estão, certamente, à flor da pele.

Ao usar a expressão “Abolição de fato!”, em novembro de 2008, em um documento celebrando a inauguração do monumento do Almirante Negro João Cândido, na Praça Quinze, no Rio de Janeiro, pensei nos espaços de poder onde os negros ainda não estão inseridos, o que significa o quão longe ainda estamos daquela Abolição sonhada por tantos escravos, quilombolas, abolicionistas, e até mesmo pelo Imperador D. Pedro II, que preconizava a Abolição da Escravatura acompanhada da entrega de terra e de recursos para os futuros libertos.

A Memória da presença do Negro em terras brasileiras, e a História dos Povos Africanos ao longo dos milênios, ensinadas nas escolas  brasileiras é uma das vertentes da luta pelas transformações necessárias à mudança de mentalidade de Negros, os afro-descendentes, e do  restante da população.

A completa implementação da Lei 10.639-03, exige especial empenho das autoridades, municipais, estaduais ou federais, na capacitação de professores, na confecção de material didático compatível, e da criação de uma rede nacional de pessoas, professores ou não, capazes de levar a informação sobre a cultura africana e afro-brasileira, aonde houver espaço de discussão sobre o tema.

A educação de qualidade, em caráter universal, desde os primeiros anos da infância, deverá ser prioridade de todos os governantes.

Conhecemos as dificuldades de acesso à escola dos filhos das mães negras e pobres, muitas vezes, chefes de família, e segundo pesquisa do IBGE, 73,7% das famílias brasileiras são chefiadas por homens e 26,3% por mulheres, e a divisão é de 54,3% entre lares chefiados por  pessoas brancas, e 45,7% por pessoas negras. A Organização Internacional do Trabalho declarou que 10% dos mais ricos do Brasil investem 5,6% em educação enquanto os 10% mais pobres investem apenas 0,9%.

Em números absolutos, em 2007, dos pouco mais de 14 milhões de analfabetos brasileiros, quase 9 milhões eram pretos e pardos. Em termos relativos, a taxa de analfabetismo da população branca era de 6,1% para as pessoas de 15 anos ou mais de idade, sendo de mais de 14% para pretos e pardos, ou seja, mais que o dobro da taxa dos brancos.

Conhecemos também a dificuldade para que nossas crianças permaneçam na sala de aula até ao final de sua formação básica! E, aí, chegamos às cotas para estudantes negros nas universidades.

Em 3 de julho de 1968, o Presidente Artur da Costa e Silva, o ditador de plantão, sancionou a Lei nº 5.465, a chamada “Lei do Boi”, que  dispunha sobre o preenchimento de vagas nos estabelecimentos de ensino agrícola:

“Art. 1º Os estabelecimentos de ensino médio agrícola e as escolas superiores de Agricultura e Veterinária, mantidos pela União, reservarão, anualmente, de preferência, 50% (cinqüenta por cento) de suas vagas a candidatos agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam com suas famílias na zona rural e 30% (trinta por cento) a agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam em cidades ou vilas que não possuam estabelecimentos de ensino médio.

 

§ 1º A preferência de que trata este artigo se estenderá aos portadores de certificado de conclusão do 2º ciclo dos estabelecimentos de ensino agrícola, candidatos à matrícula nas escolas superiores de Agricultura e Veterinária, mantidas pela União.

§ 2º Em qualquer caso, os candidatos atenderão às exigências da legislação vigente, inclusive as relativas aos exames de admissão ou habilitação.”

A Lei nº 8213/91, estabelece no seu artigo 93: “determina a empresa com 100 ou mais empregados, a obrigação quanto ao preenchimento de 2% a 5% dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, com a observância ………”
Não foram observados quaisquer movimentos de repúdio, ou de contestação judicial, a essas referidas leis.

Alguém achou injustiça a reserva de vagas nas escolas, capaz de rebaixar o nível das universidades agrícolas, ou das empresas que empregam pessoas portadoras de deficiência?

Já quanto aos negros ……

No início da década de 90, o Governador do Estado do Rio de Janeiro Leonel Brizola, propôs à Assembléia Legislativa que fosse estabelecido o sistema de cotas para acesso de estudantes negros à recém-criada Universidade Estadual do Norte Fluminense. Os senhores deputados e deputadas vetaram a proposta.

Desde 1993 a Universidade Católica do Rio de Janeiro, a PUC, oferece vagas e bolsas de estudo a afro-descendentes.

As primeiras turmas sofreram agressões de toda espécie dos alunos brancos, mas a PUC faz questão de divulgar os excelentes níveis de aproveitamento de seus bolsistas negros:

ao entrar na universidade, 90% daqueles alunos estavam nos últimos lugares do vestibular, mas ao final dos cursos 70% deles estavam entre os 10% de melhores alunos das suas turmas.

A Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ – desde 2003 realiza seus vestibulares com uma reserva de cotas de 40% para a população afro-descendente. Apesar das críticas recebidas, o aproveitamento destes alunos está acima da média de outros estudantes. No período de 2003 a 2007 na UERJ a evasão entre os cotistas foi de 13% e de 17% entre os não cotistas.

Na Universidade federal da Bahia, no ano de 2005, os cotistas tiveram aproveitamento igual ou maior do que os não cotistas em 32 de 57 cursos . Em 11 dos cursos de maior concorrência, os cotistas desempenharam-se melhor em 61% das áreas.(Elio Gaspari, JB, 3.VI.2009).

No último censo, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), constatou que embora a população afro-descendente some quase 50%, do total de brasileiros, apenas 14,3% tinham curso superior. Ao mesmo tempo 82,8% de brancos conseguiram o diploma universitário. Estes
percentuais foram obtidos em uma população de 5.8 milhões de brasileiros com mais de 25 anos.

A distribuição das pessoas por cor ou raça entre os 10% mais pobres e entre o 1% mais rico mostra que os brancos chegavam a pouco mais de 25% dos mais pobres e a mais de 86% entre os mais ricos. Por sua vez, os pretos e pardos são quase 74% entre os mais pobres e só  correspondem a pouco mais de 12% dos mais ricos. As variações desses percentuais por grandes regiões, embora reflitam as diferenças de
distribuição por cor na população como um todo, mantêm as desigualdades.

As conseqüências das desigualdades educacionais se refletem nos rendimentos médios dos pretos e pardos, que se apresentam sempre menores (em torno de 50%) que os dos brancos. Mesmo quando são considerados os rendimentos hora de acordo com grupos de anos de estudo, em todos eles os brancos são favorecidos, com rendimentos hora até 40% mais elevados que os de pretos e pardos, no grupo com 12 ou mais anos de estudo.

Um professor de uma Universidade do interior de São Paulo, contou-me que entre oitocentos professores daquela escola, somente T-R-E-S são negros.

Quantos gênios foram desperdiçados porque não tiveram acesso à educação, ou foram incompreendidos exatamente por causa de sua genialidade? Quantos prêmios foram perdidos por causa dessa incompetência social em reconhecê-los? Criança negra posta nos fundos da sala de aula, quando não expulsa da mesma, e considerada criançaproblema, nem sempre é um problema, e muitas vezes pode ser um gênio não reconhecido como tal.

De acordo com o relatório anual das Desigualdades Raciais no Brasil de 2007-2008, da UFRJ, entre 1995 e 2006, o peso relativo da população auto declarada parda ou preta subiu de 45 para 49,5%. Isso significa, segundo a pesquisa, que os negros serão a maioria da população brasileira nos próximos anos.

Senhor Presidente, Senhores Deputados, Senhoras e Senhores, há anos perguntamos onde estão os negros Generais de Exército, Almirantes, Brigadeiros do Ar, Ministros das mais altas cortes do país? Como sabemos, os Negros já constituem quase a metade da população, mas esta
proporção não aparece em nossa presença nos postos de comando da política no Brasil, seja no Executivo, no Legislativo ou no Judiciário.
O povo denominou a João Candido de Almirante Negro, mas quantos negros foram designados para representar o Brasil como seus  embaixadores? Sabemos que muitos embaixadores não são oriundos dos quadros de carreira do Itamaraty, mas exercem, de maneira competente, suas funções. Em mais de 100 anos de República, apenas o Jornalista negro, Raymundo de Souza Dantas assumiu, ainda que por alguns poucos meses, a chefia da embaixada brasileira em Gana.

O Brasil proclama-se aos olhos do Mundo como uma democracia racial, mas, em verdade, não age como tal.

Queremos, e podemos, ter embaixadores e embaixadoras, ou o também correto termo embaixatrizes, que mostrem no estrangeiro a cara negra do Brasil. Quando o IBGE proclama que os negros já são a maioria da população brasileira, nada mais democrático e republicano do que ser dada a Negras e Negros a oportunidade de serem embaixadores, e não somente em países africanos, mas também em países europeus, asiáticos, das Américas e do Caribe. Por que não?

E por que não espalharmos em nossas tantas embaixadas e consulados, Adidos Culturais Negros, que divulgarão a cultura plural do Brasil ao redor do Mundo, criando interesse em nossos parceiros estrangeiros para que venham conhecer as maravilhas do nosso país, e sua diversidade cultural?

Esta é uma reivindicação que apresentamos aqui, embora saibamos que depende exclusivamente da vontade política do Exmo. Sr. Presidente da República, a concretização deste ato de reparação aos 400 anos de escravidão e 120 anos de Abolição não concretizada.

Justiça social é dar oportunidades iguais a todos, da gestação à terceira idade da vida humana. E, enquanto não temos acesso universal à educação integral e integrada, em escolas de qualidade, é hora de ações políticas inclusivas e reparadoras, para que os jovens tenham espelhos onde se possam refletir, e aprender que, no Brasil, é possível a ascensão social através dos seus próprios méritos.

Outro tema carente de solução definitiva e urgente é a regularização da posse da terra às populações remanescentes dos Quilombos, que pelo artigo 68 das Disposições Transitórias da Constituição de 1988, tiveram garantidos os direitos, àqueles que continuam a viver nas terras de seus antepassados. Não se pode permitir que os interesses de empresários, fazendeiros e grileiros se sobreponham à necessidade das  populações quilombolas, que somam mais de 1.000 núcleos em muitos estados.

As políticas públicas em prol da melhoria da qualidade de vida da população negra demoram a ser planejadas e mesmo implementadas. Entretanto, a política de extermínio dos nossos jovens negros, nas periferias ou nas favelas, continuam como a prática diária das forças da ordem, eu diria, e do extermínio, que resulta em genocídio. As pesquisas e as visitas aos institutos médicos legais de muitas grandes cidades, atestam que quase 100% dos jovens assassinados pelas forças policiais, que contam com a cumplicidade de governadores e outras  autoridades, são negros. Os “agentes da lei”, com apoio de seus comandantes, agem como a força que julga, condena e executa, sem mesmo
dar aos suspeitos, a chance de um julgamento formal.

Estabeleceu-se, sem que seja escrita, a pena de morte no Brasil, para negros e pobres.

Para que se consiga mudar alguns desses fatos, é necessário que se elejam mulheres e homens comprometidos com a causa da população afro-descendente. Será necessário para isso que os partidos políticos invistam em dar visibilidade aos seus quadros afro-descendentes, e apóiem seus candidatos e candidatas negros, nas eleições para as casas legislativas, e mesmo para os cargos do poder executivo. É importante que a população negra conheça as pessoas que trabalharão, depois de eleitas em beneficio da solução de suas necessidades básicas, que também serão alcançadas com mudanças econômicas, políticas e sociais.

 

Exmo. Sr. Presidente da Comissão de Defesa e Relações Exteriores desta casa, Dep. Severiano Alves, Exmo. Sr. Ouvidor-Geral desta Câmara, Dep. Mario Heringer, O PDT, e os seus eleitores na Bahia e em Minas Gerais devem e podem estar orgulhosos do trabalho exercido por Vossas Excelências em seus mandatos. A oportunidade desta audiência pública será um marco nas relações raciais, pois que, pela primeira vez Negros e Negras fazem ouvir suas vozes, falando por quase quinhentos anos de silêncio, mas, e principalmente por um futuro infinito que temos à nossa frente. Agradecemos a Vossas Excelências, aos demais Deputados do PDT, como o Dep. Damião, que gentilmente assinou o  requerimento para a realização deste evento, às equipes de trabalho da Comissão de Defesa e Relações Exteriores e da Ouvidoria Geral, nas pessoas da Sra.Elizabete Lima e Dr. Ruy Siqueira.

 

A todos e a todas, minhas saudações quilombolas e brizolistas,

Edialeda Salgado do Nascimento Presidente da Secretaria Nacional do Movimento Negro PDT

Brasília, 11 de agosto de 2009.

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