As diversas formas da violência racista

A violência sob diversas formas, no Brasil, na África, França e nos Estados Unidos perpassa as narrativas históricas dos filmes que reforçam os amplos movimentos antirracistas desencadeados no mundo a partir do assassinato de George Floyd em Minneápolis. As vozes de protestos do LBM – Lives Black Matter – se tornam planetárias e marcam um ponto de inflexão na luta contra a violência policial em particular. “Não me batam! Eu sou trabalhador,” gritava o rapaz de 27 anos selvagemmente espancado por cinco PMs em São Paulo, esta semana. Em apenas cinco dias outros dois casos de rapto, assassinato e espancamento de jovens negros foram flagrados nas periferias da capital daquele estado.

”Enquanto a violência do racismo perdurar, ninguém está seguro,” advertiu Angela Davis, em entrevista ao jornal The Guardian.

Em Atlanta, um novo assassinato de rapaz negro, Ryashard Brooks, alvejado num estacionamento, e morto por policiais brancos com dois tiros nas costas, alimenta a revolta e a indignação.

Nas telas, estréia o mais recente filme de Spike Lee, Destacamento blood; mas decepciona. Um ”tiro n’àgua em hora que precisaria de pontaria certeira,” comentam alguns críticos.

Preferimos ficar com a grata surpresa do lindo filme Moonlight, sob a luz do luar, que viemos a conhecer só agora, três anos depois de ter recebido o Oscar de Melhor Filme. Se nele a violência – não necessariamente a policial -, é apresentada, a violência da estrutura da sociedade americana marginalizando as comunidades negras é o pano de fundo para o estudo de um personagem muito especial: o menino, depois o rapaz e por fim o adulto Chiron, do sul da Miami dos anos 80.

Lumumba, festejado filme de Raoul Peck, deve ser (re)visto para relembrar a violência praticada pelos colonizadores europeus, pela Bélgica no caso, no processo de espoliação das riquezas do país – uma devastação que perdura no continente negro ainda hoje, com os EUA, europeus e agora a China como novo parceiro.

Há 57 anos Lumumba foi fuzilado por um pelotão de soldados organizado por oficiais belgas.

Menino 23 é um doc brasileiro que causou grande polêmica historiográfica quando lançado. Trata de um episódio escandaloso: a história impressionante de 50 crianças, na sua maioria negras, levadas de um orfanato carioca para a fazenda paulista de uma família do grupo dos privilegiados do Rio de Janeiro e lá trabalharam, até adultos, em regime de escravidão.

A violência oculta, naturalizada e sobre a qual se silencia, impregnando e envenenando a vida cotidiana brasileira quando se fala em racismo, encontramos em Outro universo. Filmete de meia hora, com duas mulheres relatando lances da sua existência, vidas pessoais e profissionais, e a distância abismal existente entre elas: uma negra, a outra, branca.

Ao que parece, está chegando ”a hora das reparações”, escreveu há dias o economista Thomas Piketty. “Com essas vagas de mobilização contra o racismo, a discriminação a esse passado colonial e escravagista decididamente não é mais aceito; qualquer que seja a sua complexidade,” diz o economista francês.

Moonlight, sob a luz do luar

Moonlight/Divulgação

Cartaz inspirado numa peça teatral, a linguagem cinematográfica do ótimo diretor Barry Jenkins é original, intimista, plácida, e embalada por uma trilha musical pungente. Filmada com o coração exposto, relata a trajetória do menino negro introvertido e assustado, no sul de Miami dos anos 80, que se transforma no adulto sobrevivente nas ruas do tráfico de drogas. Recomendado e disponível no NOW.

Lumumba

Lumumba/Divulgação

O filme é de 2000 e dirigido pelo haitiano Raoul Peck. Uma produção centrada no papel do líder e primeiro ministro do Congo, Patrice Lumumba, no período que antecede e logo depois da proclamação da independência do país. Seu governo durou poucos meses. Como a recém nascida República Democrática do Congo ainda estava conturbada, o filme foi rodado no Zimbábue e na Beira, em Moçambique e apresenta a luta de Lumumba até o seu fim, assassinado, para impedir que o país caísse nas mãos de Joseph Mobutu, o que infelizmente ocorreu.

Estreou no Festival de Cannes de 2000, sua bilheteria foi excepcional na Europa, EUA e Canadá, e rastreia a vida do carismático ex-vendedor de cerveja e funcionário público que se tornou um mito no movimento pan-africano, e na história do continente e da política internacional.

O filme provocou controvérsia em 2002, quando Frank Carlucci , ex-funcionário do governo americano e protegido de Donald Rumsfeld , convenceu a HBO, onde ele seria exibido, a excluir a cena com uma referência a ele. A sequência: um grupo de oficiais belgas e congoleses discutem para decidir se devem matar ou não Lumumba. Carlucci é convidado a entrar na sala e murmura que o governo dos EUA não se envolve nos assuntos internos de outros países. Em algumas versões do filme o corte foi feito; em outras, a cândida observação de Carlucci está lá, por inteiro, como no DVD posto à venda na época. Hoje, as provas não mentem: a morte de Lumumba contou com o envolvimento ativo dos Estados Unidos, da Inglaterra e da Bélgica.

Um trecho do artigo publicado em Carta Maior, por Felipe Honorato: (…) ”Entre janeiro e fevereiro de 1960, realizou-se em Bruxelas, capital belga, uma rodada de negociações entre lideranças políticas do então Congo Belga e da então Ruanda-urundi, e autoridades metropolitanas. Nestas negociações, que determinaram como seria o processo de retomada da autonomia destes territórios, foi acordado que em maio do referido ano seriam realizadas eleições no Congo, e, até a elaboração de uma constituição, a chamada Lei Fundamental serviria como a carta magna do país.

Realizado o primeiro pleito da história congolesa, Patrice Emory Lumumba foi eleito o primeiro primeiro-ministro do país recém-independente. Lumumba, que impressionando seus pares pan-africanos, acabou por ser eleito também secretário do Congresso Pan-africano em 1958, na cerimônia de cessão do poder do país dos belgas para os congoleses, chocou a todos ao fazer, para uma plateia que contava com a presença do rei Balduíno, um discurso que invocava o direito dos congoleses de controlar a exploração de seus recursos naturais e serem os principais beneficiados por esta atividade. Por isto, era visto com uma figura nacionalista demais e um potencial líder que levaria o Congo à esfera de influência soviética.

O Congo era precioso no contexto da guerra fria, por suas enormes reservas de minerais estratégicos – há quem diga que, por exemplo, todo material radioativo presente nas bombas que caíram sobre Hiroshima e Nagasaki foi extraído de minas congolesas; além disto, os belgas, em seu modelo de exploração em parceria com a iniciativa privada, tinham ali dezenas de milhões de dólares investidos e não estavam dispostos a arriscar, mesmo com a independência política de sua ex-colônia, que as velhas relações econômicas fossem profundamente modificadas.

Foi, então, posto em prática um plano para desestabilização do país, com o incentivo e amparo ao processo de secessão da província do Catanga, principal polo minerador do país, uma posterior prisão e assassinato de Patrice Lumumba e, ao fim, o rápido reconhecimento do governo de Joseph Mobutu, que assumiu através de um golpe de Estado. O ditador, que sempre foi bem vindo na Casa Branca e em Bruxelas, se tornou, com os ganhos ilícitos de sua atuação fraudulenta como presidente congolês, o homem mais rico do mundo, ao mesmo tempo que, em seu país, a miséria era generalizada..” Disponível no Youtube. Versão original em francês, legendado em inglês. (Clique aqui para assistir)

Menino 23

Menino 23/Divulgação

Há quatro anos, quando foi lançado, o filme de Belisario Franca, o mesmo autor de Soldados do Araguaia, foi tema de resenha do crítico Carlos Alberto Mattos no seu blog. Diz ele: ”Antes mesmo de ser lançado, Menino 23 – Infâncias Perdidas no Brasil já extrapolou a esfera do cinema para se transformar numa polêmica historiográfica. O documentário de Belisario Franca baseia-se na tese de doutorado “Educação, autoritarismo e eugenia: exploração do trabalho e violência à infância desamparada no Brasil (1930-1945)”, do historiador Sidney Aguilar Filho, defendida e aprovada em 2011 na Unicamp. Sidney é o principal narrador do filme e, nele, reafirma a argumentação de que pelo menos 50 crianças (a maioria negras) foram levadas de um orfanato no Rio para fazer trabalho escravo numa fazenda paulista de propriedade da nobiliárquica família Rocha Miranda.

(…) No entanto, os relatos contidos no filme e a boa contextualização histórica deixam poucas dúvidas de que a transferência das crianças, se não atendia diretamente a um projeto de limpeza étnica, pelo menos valia-se de uma conjuntura favorável para recrutar mão de obra não remunerada. Um roteiro primoroso engaja as histórias de três daqueles meninos, sendo dois deles sobreviventes até a época da filmagem. Um deles, o “menino 23” (conforme a numeração que lhes era atribuída na fazenda), lá viveu até os 93 anos e guardou um sentimento de revolta pelas condições em que afirma ter vivido. Outro logrou fugir da fazenda e teve uma vida de muitas reviravoltas. O terceiro, conhecido como “o Dois”, viveu como servidor doméstico da casa grande e alimentou a ilusão de pertencer à classe dos patrões.” Disponível no Youtube e Vimeo. (Clique aqui para assistir)

É o que É?


Documentário curta, de pouco mais de meia-hora, vale assistir. Duas mulheres, uma negra, a outra branca, sentadas em espaços e momentos diversos, diante de uma câmera portátil, em Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, gravaram depoimentos singelos sobre suas origens, famílias e trajetórias pessoais e profissionais. São fortes a espontaneidade e a simplicidade franciscana de ambas, nessa filmagem sem cortes, realizadas em 2004 e editadas este ano dentro do programa Pulando a Cerca, da Universidade Federal Fluminense. Marcia Martins, bibliotecária da UFF, e Fátima Regina, Mestre em Ciência Política também da Universidade Federal Fluminense são as entrevistadas. O diretor é o psiquiatra Daniel Chutorianscy. O roteiro e a fotografia são de Jorge Pessano. No Youtube (Clique aqui para assistir)

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