Atoleiro racista

Quem acha que a liberdade de expressão permite manifestações como as do deputado Jair Bolsonaro também é cúmplice do crime, afirma pesquisadora

Roseli Fischmann

A indignação que varre o País, e não encontra adjetivos suficientemente adequados para se expressar, como reação às falas do deputado Jair Bolsonaro, tem como base o mesmo posicionamento histórico que levou a Constituição de 1988 a incorporar, em seu artigo 5º, o racismo como crime inafiançável e imprescritível.

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As tentativas de burlar a lei, tentando encontrar justificativa para o injustificável, seja por parte de Bolsonaro, afundando cada vez mais em seu mar de posturas discriminatórias, seja por parte dos que o apoiam, indicam a persistência do racismo.

À pergunta sobre qual seria sua reação, se seu filho se apaixonasse por uma negra, Bolsonaro disse: “Preta, não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu não corro esse risco e meus filhos foram muito bem educados. E não viveram em ambiente como lamentavelmente é o teu.”

Sua resposta foi expressão de racismo? Sim. Impossível tergiversar que a atribuição de um (des)qualificativo como “promíscua” foi feita de forma extensiva a todas as mulheres negras e não apenas a quem se dirigiu a ele. Preta não perguntou a reação do deputado a uma possível paixão do filho dele por ela; era uma pergunta ampla, geral, tratando de uma mulher negra indefinida. Toda e qualquer mulher negra.

A resposta do deputado acentua o racismo, ao associar o termo promiscuidade ao que para ele é a raiz da mesma: “ambiente como lamentavelmente é o teu”. Essa fala indica sua intenção de abranger, para além daquela particular mulher negra que o indagava, todos os negros – homens, mulheres, crianças, idosos, jovens.

A entrevista ao CQC apresenta “exemplos de manual” do que Theodor Adorno qualificou como “personalidade autoritária”, na qual a ofensa a Preta Gil significou a prova irrefutável dessa classificação. A continuidade da matéria, em suas manifestações sobre “lixar-se” para a comunidade LGBTT, é a derradeira prova dos nove da postura discriminatória que, além de autoritária, também se enquadra como violação da Constituição.

A tendência a generalizar de forma imprópria, a considerar inferiores categorias de seres humanos que venha a eleger como tais, a despersonalizar, a negar a pluralidade humana, são traços da personalidade autoritária que apoia golpes e sustenta totalitarismos. As vozes que se levantaram em sua defesa indicam o perigo que se abriga nesse tipo de atitude. Nas respostas ao CQC, o deputado não deixou dúvidas sobre sua atitude de apoio à ditadura.

O que está em jogo é não apenas a defesa de vítimas do racismo, mas também a cidadania e a democracia, cuja base é o respeito a todos e todas, por sua igual dignidade, igual direito à liberdade de ser plenamente humano. A hierarquização e o desprezo moral que a fala do deputado expressa são inaceitáveis em uma democracia. Foi esse tipo de atitude que esteve presente na política do Estado nazista que determinou a morte de milhões de judeus, romas (ciganos), homossexuais, pessoas com deficiências e, depois, adversários do regime.

São diversos os níveis de gravidade que o deputado sinalizou: “meus filhos foram muito bem educados”. Qual a mensagem que essa fala, e o que se fará dela, transmite à juventude, às crianças e a toda a população? Porque o poder educativo da mídia é indiscutível, como o poder educativo do Poder Judiciário, ao aplicar a lei – que atitude se tomará? O próprio Poder Legislativo é também chamado à arena, para dizer como reagirá já que se trata, por assim dizer, de um dos seus.

A ideia de que a liberdade de expressão garantiria esse tipo de manifestação é cúmplice desse racismo, e igualmente criminosa. Quem tiver dúvida deve consultar o histórico processo julgado pelo STF no qual foi condenado Ellwanger por racismo, o parecer como amicus curiae, de Celso Lafer, e o Daniel Sarmento de Livres e Iguais. Os estudos jurídicos sobre os discursos de ódio ensinam que, no conflito entre duas liberdades distintas, vence aquela que não prejudique a presença de qualquer cidadão no campo democrático.

O discurso de ódio impede a presença da vítima, que pode se recolher, humilhada e ofendida, se o Estado não acudir em sua defesa. Ou, como ensina Richard Dworkin, pode a vítima, individual ou coletivamente, movimentar-se no uso do direito à insurgência se perceber que o Estado a despreza tanto quanto o racista que a insultou – o que comprometerá a paz social que a democracia busca.

ROSELI FISCHMANN É COORDENADORA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO, MEMBRO DO COMITÊ CIENTÍFICO DA COALIZÃO UNESCO DE CIDADES CONTRA O RACISMO E PESQUISADORA DO CNPQ

Fonte: Estadão

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